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Noutras Palavras

01/10/2005

Caía a tarde ou caía à tarde?

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

São muito conhecidos os versos que dão início à canção "O Bêbado e a Equilibrista", de João Bosco e Aldir Blanc. É difícil encontrar quem já não os tenha cantarolado: "Caía a tarde feito um viaduto/ E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos...".

Neste espaço, esses versos suscitam uma questão gramatical: afinal, ocorre crase no "a" da expressão "a tarde"? A resposta é negativa. Ocorre a crase quando dois "as" se encontram. Nos versos transcritos acima, ocorre apenas o artigo "a", pois "a tarde" é o sujeito da forma verbal "caía", ou seja, é a ela que se refere a ação de "cair".

Caso o período fosse "Pela manhã, chegava e, à tarde, caía fora", aí sim, o emprego do acento grave (indicador da ocorrência de crase) seria necessário. O fenômeno da fusão de duas vogais, que se chama "crase" (do grego "Krâsis"), dá-se nas locuções adverbiais introduzidas por uma preposição "a" seguida de palavra feminina.

A idéia é muito simples: o substantivo feminino é antecedido de um artigo feminino "a", que, ao encontrar-se com a preposição de mesma sonoridade, se funde a ela. Ao dizer: "Fulano, à tarde, caía fora", o sujeito do verbo é a pessoa que, no período da tarde, "caía fora" ou fugia de algum lugar (e não "a tarde" em si). Dizemos, então, que a expressão "à tarde" funciona como adjunto adverbial de tempo (é a resposta à pergunta "quando?").

Não é outro o motivo de as expressões denotadoras de horas serem craseadas. Pergunta-se: "Quando você virá?". Responde-se: "Virei às 10h". As indicações de horas sempre são antecedidas de artigo. Quando, entretanto, a intenção é exprimir uma quantidade de horas (e não a hora em si), não se usa o artigo. Assim: "Esperei-o durante duas horas", "Estarei lá daqui a duas horas".

Observe que, nas construções em que uma preposição diferente do "a" antecede as horas, não ocorre a crase (lembre-se de que a crase é a fusão da preposição "a" com os artigos "a" ou "as"). Assim, não há crase em frases do tipo "Estarei aqui até as 23h" (preposição "até" + artigo "as"), "Estou aqui desde as 16h" (preposição "desde" + artigo "as"), "O início do espetáculo está marcado para as 20h" (preposição "para" + artigo "as").

Não é, todavia, apenas nas locuções femininas que exprimem a idéia de tempo que empregamos o acento grave. O princípio vale para as locuções adverbiais em geral, desde que seu núcleo seja uma palavra feminina. Assim: "Fique à vontade" (circunstância de modo), "Sentou-se à mesa" (circunstância de lugar).

Exceção costuma fazer-se às locuções adverbiais de instrumento: "escrever a caneta ou a tinta" (do mesmo modo, dizemos "escrever a lápis", sem artigo antes do substantivo), "carro movido a gasolina", "barco a vela", situações em que o artigo é suprimido para exprimir idéia de generalização (um tipo de instrumento em oposição a outro).

Para compreender melhor o que vem a ser a expressão adverbial (denotadora da circunstância em que a ação ocorre), vale a pena lembrar os inspirados versos do piauiense (amigo, poeta e entusiasta das letras) Cineas Santos: "Quando o amor bate à porta, tudo é festa/ Quando o amor bate a porta, nada resta".

Com tão poucas palavras, Cineas redefine o "contentamento descontente" de que já falava Camões.

Observe como a oposição presença/ausência do acento grave é fundamental para a compreensão do texto. Em "bate à porta", ocorre a locução adverbial de lugar ("à porta"); em "bate a porta", a expressão "a porta" é o objeto direto do verbo "bater", ou seja, aquilo que alguém (no caso, o amor) bate. A riqueza da imagem decorre da coincidência sonora simultânea à oposição semântica ("bater à porta" significa "chegar" e "bater a porta" significa "partir").

As locuções prepositivas (ou preposições compostas, expressas por mais de uma palavra) e as locuções conjuntivas (ou conjunções compostas) obedecem ao mesmo princípio das adverbiais: sendo iniciadas pela preposição "a" seguida de palavra feminina, recebem o acento grave. Assim: "à custa de", "à espera de", "à beira de", "à margem de" (prepositivas); "à medida que", "à proporção que" (conjuntivas).

A locução prepositiva "à moda de" tem uma peculiaridade: nela se costuma observar a elisão do substantivo feminino "moda", mas, mesmo nos casos em que isso ocorre, mantém-se o acento de crase. Assim, dizemos, por exemplo: "Saiu à francesa". Sem o acento, uma frase como essa teria seu sentido alterado, pois, em "Saiu a francesa", "a francesa" é o sujeito da oração, ou seja, é a ela que se refere a ação de sair.

Independentemente da possibilidade de surgir uma leitura diversa daquela pretendida, é obrigatório o uso do acento grave no "a" de expressões como "filé à milanesa" ou "filé à Oswaldo Aranha", por exemplo, nas quais está subentendida a palavra feminina "moda".

Este é um começo de conversa sobre o tema. Nas próximas colunas, outros aspectos da questão serão abordados.

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    Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

    E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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