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Noutras Palavras

31/12/2004

Do uso das negativas com valor estilístico

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

O uso da partícula de negação tem lá suas curiosidades. Ao pedirmos a alguém que não evite ou não impeça o que quer que seja, estamos, rigorosamente, pedindo a essa pessoa que o permita. Ora, verbos como "impedir" e "evitar" têm conteúdo negativo, e a dupla negativa vale por uma afirmação. Que fatores, então, nos levam à escolha de uma ou outra forma de expressão?

Vejamos um exemplo, extraído de texto jornalístico: "A operação da Polícia Federal contra a ação de 'hackers' não impediu que os golpistas continuassem lesando pessoas pela internet". Não diríamos que a operação da polícia "permitiu" que os golpistas continuassem agindo, pois havia uma expectativa de que ela impedisse a ação dos 'hackers' e essa expectativa foi frustrada. Daí a escolha da construção "não impediu". É como se se dissesse que a operação "não impediu que os golpistas continuassem lesando pessoas pela internet, como deveria ter feito". O que se percebe disso é, por exemplo, que a língua tem muitas sutilezas e que a suposta equivalência entre as construções ou estruturas não é perfeita.

A negativa, nosso tema de hoje, pode servir a variados empregos estilísticos. Quando dizemos de alguém que "não é nada modesto", nossa intenção é, na verdade, dizer que essa pessoa é convencida. Nessa frase, foi empregado um recurso de estilo por meio do qual se nega o contrário do que se pretende afirmar. A isso chamamos "lítotes". É inegável o efeito de ênfase que esse volteio sintático-semântico produz.

Machado de Assis não usa pouco esse recurso. Um exemplo está no conto "Singular Ocorrência", da coletânea "Histórias sem Data", em que a descrição da personagem Marocas é feita da seguinte maneira: "Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará". O efeito aqui é de humor e de fina ironia, como podemos perceber.

Em outro trecho do mesmo conto, o recurso aparece novamente, então no diálogo entre os dois amigos. O primeiro observa: "Gosto desse gesto". O segundo retruca: "Ele não gostou menos". Talvez fosse mais fácil dizer: "Ele também gostou", mas reconheçamos que o efeito não seria o mesmo.

Esse uso da negativa em situações afirmativas continua no mesmo texto. Observe este fragmento: "O Leandro confessou que tivera na véspera uma fortuna rara, ou antes única, uma cousa que ele nunca esperara achar, nem merecia mesmo, porque se conhecia e não passava de um pobre-diabo". Machado poderia ter optado por "era um pobre-diabo" , mas a expressão "não passar de" denota seu desejo de enfatizar a condição miserável do personagem.

Em outro ponto do curioso diálogo que travam os dois amigos, vem a frase: "Imagine como não ficou o Andrade". Na verdade, o que podemos imaginar é como efetivamente ficou o tal Andrade. O uso do advérbio "não", entretanto, realça a idéia. Esse modelo de frase é comum na linguagem do dia-a-dia.

Ainda em "Singular Ocorrência", Machado volta a fazer uso da lítotes: "_Não defendo o Andrade; a cousa não era bonita [ou seja, era feia]; mas a paixão, nesse caso, cega os melhores homens". Na seqüência do período, temos outra vez uma negativa carregada de estilo: "Andrade era digno, generoso, sincero; mas o golpe fora tão profundo, e ele amava-a tanto, que não recuou diante de uma tal vingança". Aqui não se trata de lítotes, mas de contar com uma expectativa do leitor e quebrá-la, ou seja, Andrade foi em frente, levou a cabo sua vingança, não recuou (como poderia ter feito).

Vejamos outro trecho, este do conhecido "Conto de Escola", em que Machado usa a negação para fazer uma preterição, outra figura de retórica cara aos amantes da ironia. Por meio dela, é possível tratar de um assunto ao mesmo tempo em que se afirma não o estar fazendo. Parece complicado?

Diz o narrador: "Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção". Aqui o próprio narrador "confessa" que está fazendo uso de um recurso de estilo _no caso, a preterição. E o fragmento continua, agora com mais um exemplo de lítotes: "Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro".

Apesar de esta coluna ter tratado somente "das negativas" (como diria o próprio Machado), é com muito otimismo que desejo a todos os leitores um excelente 2005, com muita prosperidade!
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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