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Noutras Palavras

06/07/2007

Uma questão bizantina

Toda vez que o assunto beira a frivolidade ou a inutilidade, logo alguém diz tratar-se de uma questão "bizantina". Que relação haverá entre a antiga cidade de Bizâncio e esse uso de seu gentílico?

Bizantino é, rigorosamente, aquilo que se refere a Bizâncio. Daí "arte bizantina", por exemplo. Bizâncio, cidade fundada no século 7º a.C., recebeu esse nome por influência de seu edificador, Bizas de Mégara.

Sob o comando do imperador Constantino 11, foi rebatizada Constantinopla, nome cujo significado outro não é que "cidade de Constantino" (palavra formada do antropônimo Constantino acrescido do termo grego "pólis"). Foi sede do Império Romano do Oriente até ser retomada pelos turcos, em 1453.

Ocorre que, enquanto Constantino 11 comandava a resistência aos maometanos, as autoridades cristãs travavam caloroso debate sobre o sexo dos anjos, desafiadora questão teológica da época. Enquanto os religiosos procuravam saber se os anjos tinham sexo, o imperador foi morto ao lado de milhares de cristãos, cedendo lugar aos novos conquistadores, comandados por Maomé 2º.

Como tudo é relativo, a questão naquele momento pareceu pouco oportuna, frívola mesmo. Daí o sentido pejorativo que a expressão adquiriu. Em tempo: Bizâncio, desde 1930, passou a chamar-se Istambul (forma turca do latim Constantinopolis).

Se bizantino, nessa expressão, é mais que simplesmente o que se refere a Bizâncio, semelhante situação se verifica quando se usa o termo "balzaquiana" --não propriamente "balzaquiano" (e a diferença de gênero é fundamental nesse caso).

Balzaquiano é o adjetivo referente a Honoré de Balzac, o escritor francês da primeira metade do século 19, célebre autor do romance "A Mulher de Trinta Anos", entre outros. É possível fazer referência a um texto qualquer de Balzac chamando-o "texto balzaquiano", ou seja, texto "pertencente a Balzac", mas dizer de uma mulher que é uma "balzaquiana" tem sentido bem diferente. A mulher balzaquiana é a mulher de trinta anos (ou que está na casa dos trinta), imortalizada na obra do escritor, para quem "uma mulher de trinta anos tem atrativos irresistíveis".

Se, no dia-a-dia, as pessoas usam o termo para aludir a uma mulher não tão jovem, mas bela, charmosa etc., não faz muito sentido dizer que um homem de trinta anos é um balzaquiano --é bom que se diga que Balzac fez referência a mulheres (não a homens) de trinta anos! Na linguagem popular, já surgiu até mesmo a forma "balzaca", que nada mais é que o resultado de uma derivação regressiva do adjetivo "balzaquiana" --sempre no feminino.

"Acaciano" é outro termo curioso. Tem origem no nome de um personagem criado por Eça de Queirós, o escritor português do século 19, autor do romance "O Primo Basílio", no qual surge o célebre Conselheiro Acácio.

Espécie de paladino da moral e dos bons costumes cristãos, tinha um falar afetado, repleto de fórmulas convencionais, chavões, frases vazias e citações. O adjetivo "acaciano" deriva do nome desse personagem e designa sobretudo o discurso vazio, enfeitado, pomposo, mas sem conteúdo, beirando o ridículo.

Uso preciso do termo está num fragmento de crônica de Carlos Heitor Cony, que, aliás, usa com freqüência o adjetivo: "Cada vez que o presidente da República dá um giro lá fora, a impressão que fica é a de uma caricatura, às vezes pomposa, às vezes ridícula, como é da natureza das caricaturas. Antenado para o auditório mais próximo fisicamente, ele fala qualquer coisa sobre qualquer tema. Sabe que dois e dois são quatro e essa obviedade é brandida em todas as situações, mas sempre com deslumbrada ênfase acaciana, de verdade recém-descoberta e inapelável".

Outros adjetivos derivam de personagens de obras literárias ou mesmo de autores que se consagraram no mundo da cultura. Desses trataremos oportunamente.

Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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