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Noutras Palavras

16/12/2005

A dupla negativa e o pronome indefinido "todo"

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

Sobre a dupla negativa

"Não fiz nada." "Não vi ninguém." Essas são frases comuns no dia-a-dia, mas suscitam o questionamento de muitos leitores, que, apoiados num raciocínio lógico, consideram impróprio negar duas vezes. Argumentam que dizer que "alguém não fez nada" significa dizer que "alguém fez alguma coisa". Quem não viu ninguém viu alguém.

Pode o raciocínio ter lógica, mas não é assim que funciona a língua. Em português, a negativa antecede o verbo, de modo que não temos de afirmar antes de negar. Vale aqui um parêntese: há regiões em que se registram, sobretudo na fala, expressões do tipo "Fiz não", "Sei não" etc., em que a negativa se coloca depois do verbo.

São, entretanto, construções mais comuns na oralidade e é possível que decorram do encolhimento de uma construção enfática do tipo "Não fiz, não", "Não sei, não", em que a segunda negativa tem mais realce que a primeira.

Fechado o parêntese, observamos que, na norma culta, o comportamento da língua é o de a negativa anteceder o verbo. Daí o fato de não se ouvirem sistematicamente construções do tipo "fiz nada" ou "vi ninguém". Ocorre, isto sim, a dupla negativa, que tem valor enfático ("Não fiz nada", "Não vi ninguém").

No caso de uma inversão sintática, uma só negativa é suficiente: "Nada fiz", "Nada sei sobre isso"; Na ordem direta, todavia, a negativa se repete: "Não sei nada sobre isso".

Essa dupla negativa nada tem a ver com outra, esta sim, problemática. Há verbos no português que têm sentido negativo: é o caso de "impedir" ou de "evitar", por exemplo. "Impedir" é não permitir, "evitar" é fazer que não aconteça.

Se não impedimos que uma coisa aconteça, essa coisa efetivamente acontece; se não evitamos que uma coisa ocorra, essa coisa ocorre. Nesse tipo de construção, a palavra negativa antepõe-se a um termo de significado negativo e, dessa maneira, nega-se a negação, produzindo-se uma afirmação.




Sobre o uso do pronome indefinido "todo"

É dúvida constante entre os leitores o correto uso de expressões como "todo dia" e "todo o dia", por exemplo. Em suma, o artigo é necessário ou não?

No português do Brasil, ocorre uma distinção entre a expressão construída com o artigo e aquela construída sem ele. Quando dizemos "todo dia", sem artigo, estamos fazendo referência a todos os dias, à seqüência dos dias, um dia após o outro. Já a construção "todo o dia" alude ao dia em sua totalidade, ou seja, trata-se, então, do dia inteiro. Assim, se alguém trabalha todo dia, é sinal de que labuta todos os dias, mas, se trabalha todo o dia, é sinal de que trabalha o dia inteiro.

Assim, o pronome "todo" que antecede um substantivo sem a presença do artigo tem o significado aproximado do pronome indefinido "qualquer". No conhecido verso "Qualquer maneira de amar vale a pena", da canção "Paula e Bebeto", de Milton Nascimento, poderia ter sido usado, sem prejuízo de sentido, o pronome indefinido "toda" ("Toda maneira de amar vale a pena").

Feita essa distinção, como lidar com a expressão "todo mundo"? A expressão não se refere a mais de um mundo (ou "qualquer mundo"). Antes alude a todas as pessoas, ou seja, ao mundo inteiro. Nesse caso, o ideal é empregar "todo o mundo" no sentido de "todas as pessoas". Recente título de reportagem da revista "Veja" diz o seguinte: "Todo mundo de olho no Brasil". É bastante comum esse uso da expressão e é possível que haja quem o defenda, alegando justamente a sua freqüência. Atentando, porém, para o significado da expressão, fica claro que o artigo é necessário.

É importante lembrar que, estando o pronome no plural ("todos" ou "todas"), inexiste o problema. O artigo será obrigatório antes do substantivo que estiver no plural. Assim: "Todos os dias, faço exercícios físicos", "Todas as pessoas sabem disso" etc.

Será omitido, entretanto, o artigo quando o pronome indefinido (no plural) estiver antecedendo um numeral substantivo. É o que se observa na letra da cantiga de roda "Teresinha": "Teresinha de Jesus, de uma queda foi ao chão/ Acudiram três cavalheiros, todos três chapéu na mão".

"Três", na expressão "todos três", quer dizer "três homens", "três cavalheiros". Daí ser um numeral substantivo. Caso fosse um numeral adjetivo, ou seja, caso modificasse um substantivo, a orientação seria outra. Observe a seguinte frase: "Todos os três homens ofereceram-lhe ajuda". O artigo volta a ser obrigatório quando o numeral antecede um substantivo. Na verdade, o artigo, bem como o numeral "três", determina o substantivo "homens". Enfim, quando está sozinho, o numeral não admite anteposição de artigo, mas, quando antecede o substantivo, exige-a. Com um pouquinho de atenção, fica fácil empregar o pronome "todo" e suas variações.

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    Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

    E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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