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Noutras Palavras

24/08/2007

Era dinheiro demais para recusar a proposta...

"Ele queria a empresa mais do que outros interessados, como a General Electric, a Pearson (que edita o diário britânico 'Financial Times') e o investidor Rob Burkle, que não chegaram nem perto de contestar sua audaciosa oferta. Ele a queria mais do que as organizações de mídia que resmungaram em tom de reprovação quando ele apresentou a proposta, mas ofereciam pouco mais que retórica. E, por fim, ele a queria mais do que a família controladora, Bancroft, ou, no mínimo, ofereceu dinheiro demais para que rejeitassem a proposta." (Folha de S. Paulo, 1º de agosto de 2007)

A locução "para que" indica finalidade. Fazemos uma coisa para que outra aconteça. Dormimos à noite para que acordemos descansados pela manhã. Fazemos dietas para que fiquemos mais magros. O professor faz um sinal para que o aluno irrequieto se cale.

O que vemos, entretanto, no fragmento acima é um uso --bastante comum, diga-se de passagem-- dessa locução com sentido totalmente diferente.

Tomemos um tipo corriqueiro de notícia: beldades de ocasião são convidadas a posar nuas nas chamadas "revistas masculinas". Em geral, o primeiro convite é recusado; às vezes, o segundo também. A insistência dos chamados normalmente se faz acompanhar de propostas financeiras cada vez mais apetitosas. A negociação vai num crescendo até que a proposta seja vista como "irrecusável", o que significa que as fotos vão render um bom dinheiro, bastante dinheiro, dinheiro demais até. Não raro, diante dessas notícias, que costumam repercutir em mesas de bar e outros ambientes de descontração, ouvimos comentários do tipo "Era dinheiro demais para que ela rejeitasse a proposta" ou "Era dinheiro demais para ela rejeitar a proposta" ou "Ofereceram dinheiro demais a ela para que rejeitasse a proposta".

Muito bem. Será que podemos tomar esse "para que" ou mesmo o "para" como conectivos de valor final? Será que podemos entender que lhe ofereceram dinheiro demais a fim de que ela rejeitasse a proposta? É claro que não. Aliás, a idéia é exatamente o contrário disso. Ofereceram-lhe dinheiro demais para que ela aceitasse a proposta, não para que a recusasse. Curiosamente, a construção funciona na linguagem oral porque a entonação que o falante dá à frase é característica. Na verdade, ofereceram muito dinheiro para que (a fim de que) ela não rejeitasse a proposta. Em outras palavras, era uma quantia tão expressiva que ninguém pensaria em recusar --uma relação implícita de causa e conseqüência.

Outras frases que seguem esse mesmo modelo: "Ela era bela demais para ser amada" (aqui está pressuposto que mulheres muito belas não são amadas), "Era inteligente demais para dizer algo daquele tipo" (pressupõe-se que pessoas inteligentes não dizem coisas daquele tipo), "Era jovem demais para compreender aquilo" (pressupõe-se que pessoas muito jovens não compreendem aquilo). Assim, a oração iniciada por "para" que se segue a uma expressão intensiva ("muito", "demais") tem valor semântico inverso ao que literalmente está dito. Ao dizermos que "Fulano era inteligente demais para ter feito aquilo", queremos demonstrar que não acreditamos que ele tenha feito aquilo; ao dizermos que "Fulano era inteligente demais para não ter pensado naquilo", queremos demonstrar a convicção de que ele, de fato, pensou naquilo. Ao dizer uma frase como "Era dinheiro demais para que ela recusasse a proposta", a pessoa quer justificar o fato de ela não ter recusado a proposta.

Retomando o texto em epígrafe, "E, por fim, ele a queria mais do que a família controladora, Bancroft, ou, no mínimo, ofereceu dinheiro demais para que rejeitassem a proposta", compreendemos que Rupert Murdoch adquiriu a empresa porque fez a seus donos (a família Bancroft) uma proposta financeira irrecusável. A idéia é essa, o que o próprio contexto esclarece, mas, escrita (em vez de falada), a frase pode sugerir a interpretação de que ele teria dado dinheiro a fim de que eles (a família Bancroft) rejeitassem a proposta.

É claro que essa interpretação será rechaçada se a pessoa prestar atenção ao contexto (afinal, ninguém oferece uma alta soma de dinheiro por um negócio imaginando que a proposta será recusada; quem oferece o maior lance pretende fechar o negócio). Trata-se, em suma, de uma construção enfática, típica da linguagem oral, que, na linguagem escrita, para evitar alguma confusão, pode ser substituída por uma formulação mais analítica, do tipo "ofereceu uma quantia tão alta em dinheiro que tornou a proposta irrecusável". Dessa forma, estaríamos explicitando a relação consecutiva que existe nesse tipo de construção.

Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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