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Noutras Palavras

20/01/2006

O general e o corpo do general

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

Publicada num jornal eletrônico, a notícia da morte do general Urano Teixeira da Matta Bacellar, comandante da missão brasileira no Haiti, levanta uma questão lingüística de fundo semântico.

Dizemos que "o general morreu", mas que "seu corpo" foi levado ao cemitério. Se, por hipótese, disséssemos que "o general foi levado ao cemitério", nada nos garantiria ser ele o defunto.

Nossa questão de hoje é a escolha semântica que se deve fazer em cada situação. Num trecho da tal notícia, lemos o seguinte: "Além de indicar que Bacellar, que comandava a missão de paz no Haiti, se suicidou, o IML também comprovou que não há lesões no militar, o que poderia indicar uma luta em um eventual atentado. O Instituto deve ainda concluir os exames toxicológicos feitos no general".

Não é apropriado dizer que o Instituto Médico Legal comprovou não haver lesões "no militar". Ao IML não interessa a condição de militar da pessoa, interessa o corpo. Donde melhor seria falar em "lesões no corpo do militar". O mesmo raciocínio se pode aplicar aos exames toxicológicos, segundo o texto, "feitos no general". Menos ainda interessa a patente do militar nessa situação. Ao IML vai interessar mesmo o corpo. Os exames foram feitos, portanto, "no corpo do general".

Em suma, quer dizer que, depois de mortos, viramos simples corpos? Não necessariamente, mas é preciso observar o recorte semântico em que se insere cada referência. Uma necropsia só pode ser feita em um cadáver. Nada de dizer, então, que uma pessoa foi submetida a uma necropsia! O corpo da pessoa é que pode ter sido necropsiado.

O mesmo texto informa ainda que o corpo do general chegou ao meio-dia ao Rio de Janeiro e seguiu para o cemitério. Até aí, tudo bem. O problema virá logo em seguida: "Ao chegar ao cemitério, o general recebeu honras fúnebres. Trezentos homens da brigada de pára-quedistas prestaram homenagens junto a oficiais da Marinha e da Aeronáutica. Ele foi recebido com salvas de canhão e de fuzil. A viúva e os filhos aguardavam o corpo do militar na frente do cemitério".

A primeira frase desse parágrafo causa estranheza. Temos a sensação de que o general está vivo no cemitério a receber a homenagem. É certo que recebera "honras fúnebres", em tese destinadas a quem já cumpriu sua tarefa neste mundo (ou no aquém-túmulo de que falava Guimarães Rosa), mas isso não é suficiente para garantir (lingüisticamente falando!) que esteja morto! Além disso, "ele" ("o general") foi recebido com salvas de canhão e de fuzil.

Nessa passagem, entretanto, não parece satisfatório usar a expressão "o corpo do general", pois não é o cadáver que recebe uma homenagem, embora esta só esteja ocorrendo em virtude da morte. Talvez a solução para o impasse esteja na subtração do termo "receber". Afinal, o que se pretende é dizer que a entrada do corpo no cemitério foi acompanhada de honras fúnebres, com salvas de canhão e de fuzil. Merecida homenagem a quem dedicou a vida ao seu país.

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    Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

    E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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