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Noutras Palavras

07/01/2005

Considerações sobre o "número recorde"

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

A leitura dos jornais freqüentemente dá ensejo a comentários sobre o uso das estruturas gramaticais. Numa linguagem que se aproxima da fala, mas que procura manter o padrão culto da língua, tudo pode acontecer. Tomemos um exemplo, extraído de uma publicação de São Paulo: "A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo começou bem o ano de 2005. Atingiu o número recorde de assinaturas em relação ao ano passado".

Em que reside a estranheza do trecho? Ora, o "número recorde" é o maior número já atingido até o momento. Que quer dizer, então, o redator com "número recorde (...) em relação ao ano passado"? Ou o número é superior ao do ano anterior (estabelece-se, assim, uma relação entre os números de dois anos subseqüentes), ou o número é recorde e, portanto, supera o de todos os anos anteriores, não apenas o do ano imediatamente anterior.

Temos, assim, duas possibilidades de redigir esse texto: "A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo começou bem o ano de 2005. Atingiu número recorde de assinaturas" ou "A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo começou bem o ano de 2005. Atingiu número de assinaturas superior ao do ano passado". A construção mais adequada será a que contiver a informação correta, coisa que, apenas com a leitura desse fragmento, não temos como saber.

Curiosamente, na mesma página da publicação, lemos outro fragmento em que se emprega o termo "recorde". Observe a diferença: "O Metrô de São Paulo fechou as contas de 2004 registrando R$ 40 milhões em receita 'não-tarifária' --que não vem da bilheteria, como publicidade e aluguel de espaços promocionais. O valor é recorde e representa 5% do total da arrecadação da empresa". Agora a palavra foi corretamente empregada, ou seja, o valor foi o maior já registrado.

Não é demais relembrar a correta pronúncia desse termo. Embora comumente pronunciada como proparoxítona ("récorde"), a palavra é uma paroxítona, isto é, a sua sílaba tônica (mais forte) é "-cor-". E a oscilação de pronúncia não pára por aí. Basta lembrar o nome de conhecida emissora de TV de São Paulo: a TV Record (lê-se "recór"), cuja pronúncia é francesa.

Na verdade, a palavra tem origem latina (do mesmo radical de "recordar", "concordar", "cordial", "cardíaco" etc.) e é pelo francês que chega ao inglês para, finalmente, desembocar no português. "Cor" (lê-se "cór"), em latim, quer dizer "coração". Daí "concordar" significar "pôr os corações juntos" e "discordar" significar "separar os corações". Um abraço "cordial" é um abraço "de coração", uma parada "cardíaca" é uma parada "do coração".

Saber uma lição "de cor" é sabê-la de memória. Por quê? Porque se acreditava, no passado, que a memória residisse no coração. E que tem isso tudo que ver com "recorde"? "Recorde" é a melhor marca atingida por um atleta em uma atividade esportiva; é, portanto, uma marca "memorável" ou inesquecível. Daí "recorde". Como se vê, o sentido da palavra ampliou-se figurativamente. Seu emprego tem claro valor enfático.
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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