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Noutras Palavras

14/01/2005

Imprecisão das construções pode conduzir a ambigüidades

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

Em outras oportunidades, já comentei a diferença que a posição das palavras na frase pode fazer --principalmente quando se trata de linguagem escrita, situação em que não se dispõe dos recursos expressivos da fala e da gestualidade.

Recentemente, lendo um texto de um articulista da imprensa, deparei com o seguinte: "No finalzinho do ano, almoçando num dos restaurantes mais caros de São Paulo, um tucano dos graúdos comentava com ares de indignada satisfação como havia mudado a turma do PT". Ora, o contexto nos levará à compreensão de que não foi o tal tucano "dos graúdos" que mudou "a turma do PT"; a construção, no entanto, do ponto de vista gramatical, permite também essa interpretação.

O vilão dessa história é o verbo "mudar", que tanto pode ser um intransitivo ("alguém mudou", ou seja, "transformou-se") como um transitivo direto ("uma pessoa mudou outra"). Além disso, a palavra "como" pode assumir diferentes valores.

Vejamos: se o tal tucano fosse o responsável pela transformação da "turma do PT" (o verbo "mudar" seria, então, transitivo direto), a palavra "como" ali estaria para indicar o modo como ele teria empreendido tal façanha e seria essa a informação importante do fragmento. Na interpretação adequada à intenção do autor, o tucano apenas demonstra seu espanto diante de uma situação que constata, ou seja, a de que a "turma do PT" mudou e, nesse caso, a palavra "como" tem valor exclamativo, deixando de denotar a idéia de modo. A informação relevante agora é representada pela oração exclamativa inteira ("como a turma do PT mudou").

Evitar toda essa confusão, pelo menos nesse caso, não seria muito difícil. Bastaria alterar a posição da expressão "a turma do PT", pois, na ordem direta (a mais usual), o sujeito fica antes do verbo. Assim: "No finalzinho do ano, almoçando num dos restaurantes mais caros de São Paulo, um tucano dos graúdos comentava com ares de indignada satisfação como a turma do PT havia mudado"

O defeito do fragmento em questão é a ambigüidade, ou seja, a possibilidade de dupla interpretação de um texto: a "turma do PT" pratica uma ação (a de "mudar") ou é alvo dela (é mudada por alguém)?

Quem, afinal, pratica as ações?

Essa questão levanta outra, relativamente freqüente nos textos jornalísticos: quem, afinal, pratica as ações expressas pelas formas verbais? Nada melhor que um exemplo para que se possa visualizar o problema. Veja o seguinte trecho: "Mahmoud Abbas, o favorito na eleição que escolherá no próximo domingo o sucessor de Iasser Arafat como presidente da Autoridade Nacional Palestina, endureceu ontem o tom crítico contra Israel, provocando especulações de que sua propalada 'moderação' pode ter sido exagerada".

Segundo o texto, a eleição escolherá o sucessor de Iasser Arafat, mas, na verdade, por meio da eleição, o sucessor de Iasser Arafat será escolhido. A eleição é o meio pelo qual os eleitores escolhem o candidato; não é a ela, portanto, que se deve atribuir a escolha.

No trecho selecionado, também salta aos olhos outra seqüência: "[Abbas] endureceu (...) o tom crítico contra Israel". O termo mais adequado seria "elevou" no lugar de "endureceu". Melhor ainda seria dizer que "Abbas elevou o tom de suas críticas (e não o "tom crítico") contra Israel".

O fragmento ainda pode merecer uma observação. Na parte final, diz-se o seguinte: "(...) provocando especulações de que sua propalada 'moderação' pode ter sido exagerada". Provavelmente, julgar Abbas "moderado" é que pode ter sido um exagero (ou uma atitude precipitada). Também se pode pensar que Abbas não é tão "moderado" quanto se supunha.

O texto final poderia, então, ser o seguinte: Mahmoud Abbas, o favorito na eleição em que será escolhido, no próximo domingo, o sucessor de Iasser Arafat como presidente da Autoridade Nacional Palestina, elevou ontem o tom de suas críticas contra Israel, provocando especulações de que pode ter sido um exagero julgá-lo "moderado" (ou: especulações de que talvez não seja tão "moderado" quanto se imaginava).
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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