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Noutras Palavras

11/02/2005

Um parágrafo um tanto problemático

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

É verão, mas o sol demora a aparecer aqui em São Paulo. As revistas voltadas para a saúde e a beleza não perdem tempo e incluem entre os seus já tradicionais conselhos o uso dos chamados autobronzeadores, produtos que prometem dar à pele, mesmo sem exposição ao sol, a desejada tonalidade bronzeada.

Destaco um trecho extraído de reportagem recentemente divulgada em uma dessas publicações: "Atualmente muitos deles [autobronzeadores] já perderam o tom alaranjado que costumavam deixar na pele, mas ainda é necessário tomar muito cuidado na hora da aplicação, evitando que as mãos, joelhos e cotovelos não manchem, nem fiquem mais escuras que as outras regiões do corpo". É possível que, à primeira vista, o leitor não veja problema algum no texto e compreenda a recomendação do redator, independentemente daquilo que, de fato, está escrito. Isso pode ocorrer em virtude de o conteúdo do texto ser um tanto previsível.

O fato é que, do ponto de vista da precisão da linguagem, há várias observações a fazer.

"...evitando que não manchem..."

O que salta aos olhos em primeiro lugar é o emprego indevido das partículas de negação. Note que o redator usou o verbo "evitar", cujo sentido já é negativo. "Evitar" significa "impedir", "não permitir". Evitar que "as mãos (...) não manchem nem fiquem mais escuras (...)" (sic) é o mesmo que assegurar que elas fiquem efetivamente manchadas ou mais escuras que o resto do corpo, o que é o contrário do que se pretendia dizer. Se ler o que está, de fato, escrito, o leitor evitará o uso do autobronzeador!

"...que as mãos (...) não manchem..."

O verbo "manchar" é outro ponto problemático do trecho em questão. Trata-se de um transitivo direto, o que vale dizer que uma coisa mancha outra. Por exemplo: a tinta manchou o vestido, aquela atitude manchou sua reputação etc. O ideal, então, seria dizer "evitar que as mãos fiquem manchadas", pois é o cosmético que pode manchar a pele.

"...as mãos, joelhos e cotovelos (...) fiquem mais escuras..."

No texto, o redator usa o artigo antes de "mãos", mas o omite diante de "joelhos" e de "cotovelos". O resultado disso é a ruptura do paralelismo sintático da expressão (afinal, o sintagma é formado de três substantivos de mesmo valor e, portanto, não se justifica a omissão do artigo nos dois últimos). Além disso, pode-se aventar a hipótese de ser esse fato o responsável pelo emprego do adjetivo "escuras", no feminino plural, em contraposição ao princípio de concordância nominal segundo o qual um adjetivo que se refira a substantivos de gêneros diferentes deve ficar no masculino plural ("escuros", portanto, seria a forma correta).

Assim, é preciso evitar que as mãos, os joelhos e os cotovelos fiquem manchados ou mais escuros que "as outras regiões do corpo" (sic).

"...as outras regiões do corpo..."

Ora, ao dizer "as outras regiões do corpo", fica implícito que as mãos, os joelhos e os cotovelos são igualmente regiões do corpo, o que parece pouco adequado, dada a amplitude do termo. Talvez fosse melhor optar pela expressão "partes do corpo".

"...perderam o tom alaranjado que costumavam deixar na pele..."

O texto, apesar de curto (apenas um parágrafo), ainda apresenta outro problema de construção. Logo no início, afirma-se que os autobronzeadores "já perderam o tom alaranjado que costumavam deixar na pele". Bem, perde-se aquilo que se tem. Se o tal produto deixa a pele alaranjada, a cor é atributo associado à pele, mas não é uma propriedade do produto (a propriedade do produto não é a cor alaranjada em si, mas a capacidade de deixar a pele alaranjada).

Na verdade, o verbo "perder" está sendo usado para denotar uma situação que deixou de ocorrer, como se faz naturalmente em frases do tipo "fulano perdeu a cor" (isto é, "ficou pálido") ou "o discurso perdeu o tom irônico" (isto é, "deixou de ser irônico"). Seria possível dizer que o produto perdeu a característica de dar à pele um tom alaranjado.

Uma sugestão

Fica aqui uma sugestão para reformular o parágrafo: "Atualmente muitos deles deixaram de tingir a pele de um tom alaranjado, como costumava ocorrer, mas ainda é necessário tomar muito cuidado na hora da aplicação desse tipo de produto a fim de evitar que as mãos, os joelhos e os cotovelos fiquem manchados ou mais escuros que as outras partes do corpo".
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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