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Pai é Pai

08/09/2008

Mentira

Foi como um soco no estômago. A gente sabe que pode rolar a qualquer momento, que vai acontecer, mas jamais estamos 100% preparados para a dor que ele provoca. E como doeu.

Na rotina escolar do João, terças e quintas são reservadas à natação. Na própria escolinha tem uma boa piscina e um professor atencioso que conhece o menino desde quando ele ainda sujava as fraldas. Atendendo a uma reivindicação mais do que justa do João, mudamos o horário das aulas da manhã para a tarde, justamente para que ele pudesse estar ao lado de seus amigos mais próximos nessa farra. Ok, nesses dois dias, ele nada no final da tarde e já vai da escola para casa de banho tomado.

Pode parecer um detalhe para nós, pais, que, depois de um certo tempo, nos acostumamos a executar a rotina diária tal qual autômatos. Para ele, no entanto, a natação traz como bônus um tempo extra de brincadeira em casa, minutos a mais do seu desenho preferido e, por fim, uma chateação a menos, que é como, creio, a maioria das crianças de seis anos encara o banho diário.

Pois bem, dia desses, como de costume, peguei os meninos na saída da escola. Notei que o João, apesar de ser dia de natação, tinha os cabelos secos. Também não senti o característico cheirinho de xampu que o acompanha nessas ocasiões.

- E aí, João, nadou hoje?

- Sim, papai.

- Mas o tio não estava doente? (Eu havia lido em comunicado no site da escola que o professor ficaria afastado por uma semana por motivo de saúde.)

- Não, ele foi. Teve aula normal.

Diante de resposta tão enfática, calei-me. Ao chegar em casa, João agiu como sempre age nas terças e quintas. Brincou mais um pouco, jantou, viu seus desenhos e, surpresa, ainda ganhou um DVD de presente deste que vos escreve, ao qual assistimos juntos.

- João, você já tomou banho?, perguntou a Mãe ao chegar.

- Tomei, mãe. Hoje é dia de natação, lembra?

E dormiu feliz, como um anjo, como sempre.

No dia seguinte, a casa caiu. Intrigada, a Mãe percebeu que tanto a toalha como a sunga do menino estavam totalmente secas. Mas ele não havia dito que tinha nadado? Questionado, João abriu o jogo. A aula de natação fora cancelada, pois o professor, como dizia a circular que eu havia lido, estava mesmo doente. João mentira. Havia sustentado a história falsa para se livrar do banho e assim usufruir de alguns minutos de lazer a mais. E foi aí que recebi o tal soco no estômago.

No começo, confesso, fiquei puto. Muito. Com ele e com a minha ingenuidade. Afinal, eu sabia de antemão que a aula tinha sido cancelada, mas preferi acreditar na versão do João a admitir que ele, pela primeira vez, estava me contando uma mentira.

Em seguida, veio a reação. Duro, o repreendi. Falei alto. Expliquei que esse tipo de atitude não leva a nada. Como ele poderia ter feito aquilo? Confisquei o DVD que havia dado de presente. Disse que ele não o veria nos próximos três dias. Ele estava de castigo. Como numa bola de neve, minha vontade era penalizá-lo ainda mais. Proibi-lo de dormir na casa do amigo no fim-de-semana, vetar a televisão, cortar a sobremesa e sei lá mais o quê. O João chorou. Mas eu queria mais. Sentia-me traído. E foi aí que veio a dor.

A Mãe, então, interferiu. Fez-me ver que já era o bastante. Que não adiantava ficar remoendo essa história. O menino havia entendido que cometera um erro, e que esse erro era grave. Também já tinha sido punido com o confisco do DVD que ele tanto gostara. Demorei a concordar, mas cedi. Ela tinha razão. Já era o bastante.

Na noite deste mesmo dia, quando reencontrei os meninos na saída da escola, enquanto o Pedro pulava feito pipoca, o João estava lá, cabeça baixa, triste. Na mão, três desenhos que havia pintado para mim. Era o seu pedido de desculpa. E foi aí que aquela dor que havia me consumido durante todo o dia voltou a crescer. Tomei os papéis, afaguei a sua cabeça.

- Obrigado, João. Vamos pra casa.

Em tempo: ainda que a paz tenha sido selada, mantive minha palavra e o João ficou sem ver o DVD até o final da semana.

Luiz Rivoiro é pai de João, 8, e de Pedro, 3. Jornalista, trabalhou na "Folha de S.Paulo" por 14 anos. É editor da revista "Playboy" e autor do livro "Pai É Pai - Diário de um Aprendiz". Escreve quinzenalmente para a Folha Online.

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