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Pai é Pai

21/06/2009

Janela

Quinta-feira cheguei em casa e logo vi que algo estava diferente por ali. Logo que abri a porta, o João abriu um sorriso daqueles, deixando à mostra todos os seus pequenos dentes. Todos? Ops, todos não! Foi aí que percebi a janelinha no andar de baixo e que o motivo daquele sorriso era um imenso orgulho. Afinal, aos 7 anos, finalmente o primeiro dente caíra. E o João sentia-se muito mais maduro, dava para ver.

- E aí, João, como você está se sentindo?

- Esquisito.

- E o que mais?

- Esquisito, só isso. Tem um buraquinho aqui.

- E não doeu?

- Não, já estava mole, mas não caía. Aí a Re (nossa fiel ajudante) puxou e ele saiu. Doeu um pouco na hora, mas agora não sinto mais nada.

E isso foi tudo. Quando olhei, lá estava ele concentrado no seu DS. Vez em quanto, eu percebia, ele passava a língua pelo vão, como que para se certificar que o dente não estava mais lá.

Lembrei de quando o meu primeiro dente caiu. É, faz tempo, eu sei. Mas tem coisas que a gente, por mais corriqueiras que sejam, ficam gravadas em algum canto da memória. E quando algo ou alguém aperta uma espécie de tecla imaginária, plop! A lembrança salta. Eu tinha sete anos, assim como o João. E de tanto ver desenhos animados, já havia tentando a sensacional e infalível, pelo menos na TV, estratégia de amarrar a ponta de uma linha no dente mole e a outra na maçaneta da porta. É claro que não deu certo, e eu amaldiçoei todos os episódios do Tom & Jerry e do Pernalonga. Como com eles funcionava e comigo não?

Bem, mas o fato é que não rolou e o dente cai depois que muito balançar. E lembro do sangue. Muito sangue. Talvez a primeira vez que eu via e sentia com toda intensidade o gosto daquele líquido viscoso e vermelho, nem doce, nem salgado, esquisito, enfim.

O João também falou do sangue, mas, assim como eu me lembro de mim mesmo, não chorou. Não havia motivo. O dente estava mole, uma hora iria cair e, como consequência, o sangue iria jorrar. Não muito, mas o suficiente para que ele também provasse o que eu havia provado há tanto tempo. E foi isso. Enquanto eu pensava e lembrava de tudo isso, lá estava ele. O DS deixado de lado, o gibi na mão, dizendo que estava com fome mesmo depois de já ter jantado, comido sobremesa e sei lá mais o que. Bom sinal, pensei.

Orgulhoso, liguei para a casa da minha mãe para contar a novidade.

- Agora tem de jogar em cima do telhado! É para dar sorte!

- Mas mãe, a gente mora num prédio!

- Ah, tinha esquecido...

Foi aí que lembrei disso também. Na minha infância, não tinha nada de Fada dos Dentes, como mostra os Padrinhos Mágicos. A tradição mandava pegar o dente e atirar ao telhado. Como eu morava numa casa, foi fácil. Quando o dente caiu, subi até o quarto do meus pais, cuja janela dava direto para o telhado, e de lá arremessei o dente. O pedido? Bem, disso não me lembro, mas deve ter tido algo a ver com algum brinquedo no Natal ou promessa para passar de ano.

O dente do João ainda não foi para o telhado. Na verdade, não foi a lugar nenhum. Está lá, sobre um pequeno guardanapo, na mesa da cozinha. Não sei o que faço. Se procuro um telhado, se jogo fora, se coloco sob o travesseiro dele. O fato é que toda vez que olho aquele pedaço do meu filho ali tão pequeno, penso que ele está crescendo. Que aos poucos vai tomando conta de seu corpo, da sua vida, do seu destino. É um pedacinho (mais um!) da infância que se vai. Até que em meio a esses melancólicos pensamentos chega o Pedro e dispara:

- Papai, olha só! O meu dente também tá mole! Vai cair!

- Claro que vai, Pedro, claro que vai. Mas não agora. Ainda não chegou a sua vez.

Fim

Luiz Rivoiro é pai de João, 8, e de Pedro, 3. Jornalista, trabalhou na "Folha de S.Paulo" por 14 anos. É editor da revista "Playboy" e autor do livro "Pai É Pai - Diário de um Aprendiz". Escreve quinzenalmente para a Folha Online.

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