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Pai é Pai

17/01/2010

Verão lambuzado

Logo cedo começava o corre-corre. Sobe, desce, escada, cozinha, sala, piscina, lá se pirulitavam os meninos tentando escapar dos diversos pares de mãos empastadas de filtro solar que tentavam, em vão, alcançá-los. Até que depois de muita suadeira e gritaria, eles cediam ao inapelável argumento da Mãe: "Simples assim, se não passar o creminho, nada de praia!". Pronto. Era como gritar "estátua"! De repente, como que obedecendo a um controle remoto, lá estavam eles paralisados prontos para enfrentar aquela tortura lambrequenta. Resignados, é verdade, mas fazer o quê? Afinal, se esse era o preço a pagar por uma manhã inteira de sol, mar e areia, que se pague! E que venha o FPS 50! "Ai, que saco, mamãe!"

A operação de guerra envolvendo a "lambuzagem" com o protetor solar ainda ocorreria por dez dias seguidos que passamos numa praia no litoral norte de São Paulo. Em menor escala, com status de batalhas nem tão sangrentas, se repetiriam por todas as manhãs durante todo o período que eles estivessem se esbaldando no mar. De hora em hora, por assim dizer, lá vinha o momento de maior sofrimento para eles: "Voltem aqui! Hora do creminho! Mais um pouco se não vocês vão torrar nesse sol!" A exasperação da mãe, afinal, era justificada. Ainda que eu tenha uma tez "morena-amendoada" que em conjunto com um nariz avantajado me confere um ar meio que tunisiano, quis a genética que os meninos saíssem com uma pele clara como algodão doce, muito pouco ou quase nada resistente à inclemente força devastadora do sol dos trópicos. Por isso, quando a Mãe falava "Hora do creminho!", eu dava o maior apoio, ainda que também achasse esse lambreca-lambreca um verdadeiro saco para eles, para mim, para toda a humanidade.

Mas lambuzar-se na praia tem também o seu lado bom. Na hora do picolé, por exemplo. Nada mais delicioso do que ver sob a luz amarelada do guarda-sol aquele roxo uva derretendo e escorrendo pelo canto da boca, mãos, braços, pernas, orelhas, enfim. E também a lambrecagem proporcionada pelos demais sabores e cores típicas do verão, como verde-claro do abacate, o amarelo do milho-verde, o branco-leitoso do côco, o laranja vivo da tangerina e, por que não, o vermelho vibrante da groselha. Dava para ver que essa meleca sim, podia escorrer geladinha pela pele que não tinha problema algum. Terminada a operação, bastava uma corridinha até o mar para estar tudo novinho de novo, pronto para outra. E vinha mais, claro.

"Pai, posso tomar uma raspadinha?" E, a despeito de todas as dúvidas em relação à procedência daquela barra de gelo depositada naquele carrinho mequetrefe, como negar à criança o prazer de degustar este clássico e legítimo sabor das praias brasileiras? E lá se iam os meninos. Ofuscantes em suas tonalidades cromáticas, os sabores azul e verde eram os escolhidos. Apesar de o vendedor garantir que se tratava de um tipo de groselha e de menta, admito minha total incapacidade de diferenciar um do outro. Para mim, aquele gelo picado generosamente encharcado de líquidos em tons neon tinham exatamente o mesmo sabor. Mas quem se importa? Para os garotos, o mais bacana era sorver aquela exótica combinação refrescante e, claro, deixá-la escorrer, mais uma vez, pelos cantos da boca, mãos, braços, pernas, orelhas, enfim. Depois, claro, bastava mais uma corridinha até o mar e pronto: que viesse o próximo prato!

Consumidos de forma alternada com os diversos picolés e raspadinhas, outros três campeões das areias marcavam presença quase que diária. Todos, óbvio, dotados de alto teor de lambuzagem: a água de côco, o milho verde e o hot-dog. Este último, por sinal, era mais uma fonte de grande preocupação paterna devido ao seu alto nível de prodreira. No entanto, depois de conversar com nosso amigo da barraca, checar as condições de higiene e armazenagem e ouvir outros consumidores frequentes, o sanduba foi liberado para ser devorado com parcimônia, sem maionese alguma, apenas mostarda e ketchup, prensado na chapa. Uma delícia, sem dúvida, que o João, notando à curta distância os olhares gulosos de tios, amigos e, admito, o meu em sua direção, decidiu espertamente ir se lambuzar noutra freguesia.

Luiz Rivoiro é pai de João, 8, e de Pedro, 3. Jornalista, trabalhou na "Folha de S.Paulo" por 14 anos. É editor da revista "Playboy" e autor do livro "Pai É Pai - Diário de um Aprendiz". Escreve quinzenalmente para a Folha Online.

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