Colunas

Quero Ser Mãe

24/09/2004

Infertilidade e Feminilidade

LUCIANA LEIS
especial para a Folha Online

Na história da humanidade, a desigualdade entre homem e mulher sempre se deu na distinção de papéis sexuais. Deste modo, na cultura ocidental, coube ao homem trabalhar e garantir o sustento do lar, sendo que, à mulher coube as funções de cuidados domésticos e com os filhos.

Logo, percebe-se que a mulher, com o passar do tempo, foi ficando vinculada à idéia de mãe para tornar-se plenamente mulher. A capacidade de gerar e amamentar um filho são tidas como "naturais" a toda mulher, reforçando que a maternidade é esperada à todas elas.

No entanto, com o advento da Primeira Guerra Mundial, foi solicitado às mulheres que saíssem de suas casas para cuidarem de feridos em hospitais, cultivarem o campo e ocuparem os postos dos homens nas indústrias. Assim, a guerra proporcionou maior liberdade, responsabilidade e novas perspectivas profissionais à mulher. Desta forma, cada vez mais integrada ao sistema produtivo, a maternidade passou a não ser mais o centro da vida das mulheres, o qual se deslocou para outros campos, como a vida profissional e afetiva.

Entretanto, mesmo com tantas transformações e conquistas, o desejo de maternidade continuou para a maioria das mulheres. Porém, há que se diferenciar o desejo de maternidade da mulher moderna da de antigamente, uma vez que todas as mudanças que ocorreram no decorrer de sua história levaram a um amadurecimento e autocriação feminina.

O que sobressai agora é a liberdade de ser responsável por seu próprio caminho, sendo que a maternidade deixou de ser o único objetivo da vida da mulher, passando a ser uma das possíveis escolhas em busca de seu desenvolvimento pessoal.

Acontece que, embora hoje em dia a maternidade seja um dos caminhos onde a mulher pode se auto-realizar e sentir-se produtiva, o desejo de filhos está bastante interiorizado na maioria delas, fruto de uma conquista histórica e passado de mãe para filha através de processos identificatórios. Sendo assim, a infertilidade pode abrir um vazio quanto ao referencial feminino, principalmente se não houver abertura para a análise de outras possibilidades onde se possa "se sentir mulher".

Associado à questão sócio-cultural que não deve ser desconsiderada, é interessante destacar também, que o desejo de filhos data desde a primeira infância, onde podemos perceber as meninas brincando com seus "bebês imaginários", adiando, assim, a concretização deste desejo para a vida adulta.

Tendo em vista todos os fatores até agora expostos, nota-se que ter filhos acaba sendo um dos importantes pilares da identidade feminina, inclusive, percebo entre as pacientes que atendo, com dificuldade de gravidez, que não conseguir a maternidade é como não ser completamente mulher. Desta maneira, pode-se compreender melhor o "a mais" que estas pacientes costumam investir na busca do filho: ansiedade "a mais", preocupação "a mais", desejo de engravidar "a mais" que as outras mulheres etc; como se deixando de dar esse "a mais", a gravidez não pudesse acontecer.

Lembro-me de uma paciente que, extremamente preocupada com os afazeres profissionais, culpava-se por não estar pensando nem se preocupando, o quanto gostaria, com o tratamento de infertilidade.

Sendo assim, penso que este "a mais" de investimentos, na verdade nos revela um "a menos" no campo da feminilidade, onde a busca centrada no filho, faz com que se esqueça que além da maternidade, existem outras possibilidades de investimentos férteis e gratificantes, enquanto o bebê não vem.

Luciana Leis é psicóloga do Serviço de Reprodução Humana do Hospital São Lucas e da Corplus
Cláudia Collucci, repórter da Folha de S. Paulo, é mestre em História da Ciência pela PUC-SP e autora dos livros "Por que a gravidez não vem?", da editora Atheneu, e "Quero ser Mãe", da editora Palavra Mágica. Escreve quinzenalmente na Folha Online.

E-mail: claudiacollucci@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

FolhaShop

Digite produto
ou marca