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Projeto Editorial 1988-1989, Agosto de 1988

A hora das reformas

Aprendendo com as falhas

A Folha beneficiou-se, até agora, de uma situação em que seus defeitos crônicos - acabamento precário da edição, falhas de reportagem, inexperiência e instabilidade da equipe - eram largamente obscurecidos pelo destaque que, em comparação a outros órgãos de imprensa, obtinham suas maiores qualidades - agilidade, ausência de ranço ideológico, prestação de serviços, pluralismo, espírito de controvérsia, imaginação e irreverência. Nesse período, a Folha tinha de lutar apenas contra si mesma: contra o risco de exagerar o que tinha de bom (transformando-o em arbitrariedade, invencionice, gosto de chocar) e contra o risco de naufragar no que tinha de ruim. O Manual Geral da Redação talvez tenha correspondido, exatamente, a esse esforço de autodisciplina.

Atualmente, as transformações no restante da imprensa diária e a concorrência permanente da televisão impõem um tipo de preocupações que não mais decorre, simplesmente, da necessidade de fazer um bom jornal - idéia que vai sendo absorvida pelos concorrentes - mas de corresponder, de fato, ao lugar de liderança obtido pela Folha até agora. A necessidade de investir no pluralismo, na preocupação como ser um jornal ágil e moderno, de fornecer informações precisas e confiáveis ao leitor foi-se tornando evidente e disseminando na imprensa brasileira. É sinal do sucesso do Projeto Editorial da Folha. Mas não é mais a garantia do sucesso para a Folha enquanto produto.

Depois de um longo período de marasmo, em que a Folha parecia ser, no conjunto da mídia, o único local onde havia vida e movimento, uma febre de mudanças sacode os jornais, as revistas, a TV. É como se as tendências do desenvolvimento ideológico da sociedade, primeiro manietadas pela repressão, depois excessivamente absorvidas pela paixão da política que novamente se abria, finalmente irrompessem como desembaraço, vigor e autenticidade. Agências com mentalidade nova e agressiva investem contra as "sete irmãs" do mercado de publicidade. Emissoras antes desacreditadas mostram que são capazes de desenvolver uma estratégia que lhes garante um lugar ao sol e que vai mostrando o quanto equivocada era a idéia de que estavam condenadas à marginalidade. Há novidades no mercado de revistas; no mercado de livros, editoras novas comprovam até onde se pode chegar, com imaginação e sensibilidade para perceber que os leitores estão muitas vezes além do lugar em que tendemos a colocá-los. No setor da imprensa diária, a competição por prestígio, por mais anúncios e por mais leitores adquire uma característica feroz de guerra total: os jornais que se contentaram com a sua aura de tradição e elegância se vêem subitamente ameaçados de extinção; outros, que demoraram a compreender o que se passava, se lançam agora a uma tentativa atabalhoada de recuperar o tempo e a posição que perderam, ainda que essa recuperação lhes custe a própria identidade. Seria pouco dizer que a Folha não pode, agora, isentar-se dessa ebulição que necessariamente transformará em todos os seus aspectos a indústria de comunicações do país. Muito mais do que isso, a Folha está no centro dessa ebulição: é sua causa direta no que diz respeito à imprensa diária e está também na origem, indiretamente, das alterações velozes e profundas no restante da mídia, por influência do espírito que criou. Chegamos ao final da década vitoriosos. Os pressupostos e os métodos do Projeto Editorial que vem se desenvolvendo aqui são reconhecidos por quem antes se mostrava incrédulo; copiados por quem até há pouco nos hostilizava. Adotados na prática por quem ainda insiste em fazer profissão de fé contrária a nós. O Projeto da Folha se tornou, em poucos anos, patrimônio coletivo do jornalismo brasileiro - eis aí a maior recompensa que poderíamos almejar, e também o maior risco. Até agora, foi relativamente fácil neutralizar os defeitos e fraquezas da Folha acenando com as ousadias de que só ela era capaz, com as inovações que ela introduzia uma após a outra, com o espírito de inconformismo, de rebeldia, de radicalidade que parecia perdoar-lhe as falhas todas. Esse monopólio de vantagens, de que desfrutamos por alguns anos, é no momento posto em xeque por todos os lados, pelos que nos apóiam e pelos que ainda se opõem ao que representamos, pelos que imitam, pelos que se renderam, pelos que persistem solitários e irredutíveis. Ao disseminar a idéia de que é preciso estar sempre mudando, sempre desconcertando, de surpresa em surpresa, a Folha tornou-se vítima da sua própria estratégia: não lhe resta outro caminho senão continuar, não há tranquilidade que ela possa alcançar, nem descanso, exceto o que vier assinalar que ela parou no tempo. Ao lado da concorrência com outros jornais, que se torna cada vez mais uma luta pela melhor qualidade do produto, há a concorrência com a TV, que pode ser resumida como uma luta pela melhor qualidade da informação veiculada. Estes dois desafios podem ser respondidos pela Folha. Em primeiro lugar, acumulou-se na Redação um conhecimento básico dos procedimentos, exigências e normas de qualidade, implantados pelo Manual, de que só agora os concorrentes começam, de forma empírica, a tomar ciência. Em segundo lugar, a busca de uma cobertura diferenciada e imaginosa para os fatos, a diversidade de opiniões e de enfoques veiculada pelo jornal, apesar de trazer resultados ainda incipientes, faz entrever o caminho para superar aqueles pontos em que a concorrência de televisão é de fato imbatível: a exposição concreta do fato, a informação instantânea e bruta. Interessa, então, capitalizar ao máximo os avanços já obtidos na construção de um jornalismo que leve até as últimas consequências os pontos de um projeto que, anteriormente, bastava atingir de forma razoável, mediana e aparente para ficar na liderança da imprensa brasileira. Se for para resumir numa frase o objetivo imposto pelo desafio de uma dupla concorrência, seria o caso de dizer que é preciso, mais do que nunca, fazer a luta contra o óbvio. O óbvio de uma transcrição, de um relatório acrítico dos fatos - coisa que a TV faz melhor -, e o óbvio de um aplicação mecânica de alguns procedimentos que, já incorporados pela Redação, começam a ser copiados pelos jornais concorrentes. Há um óbvio do pluralismo, um óbvio da exatidão, um óbvio da modernidade, um óbvio da isenção jornalística. Se não formos capazes de fazer desse pluralismo, dessa exatidão, dessa modernidade, dessa isenção jornalística (qualidades que nos garantiram o sucesso até aqui) o ponto de partida para em esforço de criatividade, de sofisticação, de imaginação e de crítica levados a seu ponto extremo de inteligência e arte, a distância até agora alcançada face aos concorrentes vai perder-se na indiferenciação, na rotina e na mediocridade. É preciso continuar, então. É preciso cultivar o sentimento de que apesar de todos os avanços ainda há o fazer; de que apesar de todos os esforços e de todas as lutas - contra o jornalismo chapa-branca, contra o corporativismo profissional, contra a ignorância, contra o populismo, contra as concepções românticas, e provincianas de imprensa - o trabalho mal começou. Sem esse espírito de insatisfação e de autocrítica constante, sem uma vontade perfeccionista de fazer aquilo que já foi bem feito e de inventar novas fórmulas para resolver novos problemas, é perda de tempo trabalhar na Folha. O jornal está firmemente disposto a ultrapassar sua próprias marcas e exigir cada vez mais. Como solucionar simultaneamente todos os problemas que temos pela frente? Como conciliar tantas contradições? Como continuar crescendo num mercado a cada dia mais competitivo? Como inovar depois que todas as mudanças parecem já ter sido feitas? Como atender às demandas de um público que tem interesses crescentemente diversificados e múltiplos, e parece dispor de cada vez menos tempo e inclinação para ler jornais? Como conciliar qualidade e quantidade de leitores? Como adequar as mil e uma precauções com o que melhor convém para o leitor, as necessidades de um acabamento de qualidade artesanal, às implicações e ao ritmo de uma indústria? Como fazer um jornalismo ao mesmo tempo mais analítico e mais conciso? Mais inteligente e mais acessível? Mais planejado e ainda assim apto para responder ao imprevisto de última hora, numa palavra - à notícia? A primeira edição do Manual, de setembro de 1984, já dizia que "tudo o que puder ser dito sob a forma de mapa, gráfico ou tabela não deve ser dito sob a forma de texto". Fomos pioneiros na valorização desses recursos. Eles ocupam hoje uma posição de destaque no conjunto de cada edição da Folha e são reconhecidos como instrumento altamente eficaz para tornar a leitura dos jornais mais atraente, mais rápida e mais proveitosa. Foi à custa de muito esforço que esses recursos se impuseram e hoje aparecem ao lado dos textos, em pé de igualdade com eles - mas ainda fracamente integrados a eles. Os recursos de arte não constituem apenas um complemento do texto; devem formar um todo com ele e a preocupação do arte-finalista com a reportagem deve ter por contrapartida uma idêntica preocupação do jornalista com o aproveitamento ao menos de parte das informações que ele apurou sob a forma de tabelas, quadros, gráficos etc. O restante da imprensa diária está, ainda, num estágio muito primitivo de confecção do seu material iconográfico. Esta situação tende a se modificar rapidamente e mais do que nunca é necessário investir, agora, na qualidade do acabamento e na eficácia da concepção dos nossos mapas e quadros, que são tantas vezes deficientes. Raciocínio semelhante vale para a fotografia, terreno em que a Folha experimentou considerável progresso recentemente. Incorporamos ao procedimento do fotojornalismo padrões que até então estavam reservados à fotografia artística: ângulos e enfoques diferenciados; ênfase no detalhe das fotos de esportes; fórmulas para que as fotos de jornal expressem mais do que mera imagem e se entrelacem com o significado do evento a que essa imagem está ligada; interesse maior por imagens de beleza plástica e de efeito inusitado, ainda que sua temperatura noticiosa seja baixa. Também aqui é preciso depurar os avanços realizados; evitar com igual energia tanto o retorno ao fotojornalismo convencional como o exagero que consiste em esquecer que num jornal tudo o que se publica deve ser informação.

Leia também:

Outros projetos
1981 - A Folha e alguns passos que é preciso dar
1984 - A Folha depois da campanha diretas-já
1985 - Novos rumos
1986 - A Folha em busca da excelência
1988 - A hora das reformas
1997 - Caos da informação exige jornalismo mais seletivo, qualificado e didático

 

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