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14/01/2005 - 18h57

Leia trecho do depoimento de Rita Bragatto sobre o resgate no Aconcágua

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da Folha Online

Leia trecho do depoimento da jornalista Rita Bragatto, 34, sobre o dia em que ela e o marido, o dentista Eduardo Silva, 40, alcançaram o cume do Aconcágua (Argentina). Silva morreu na montanha.

"No dia 06 de janeiro, deixamos o acampamento Nido de Condores por volta das 1h30. Geralmente, muitos montanhistas deixam o acampamento às 3h, mas como caminhamos devagar, achamos mais prudente sairmos mais cedo para termos tempo de reconhecimento seguro do terreno e de fazer nossa alimentação sem pressa, adequadamente.

Carregávamos cada um cinco litros de água (sendo dois litros de isotônicos). Vestíamos três camadas de roupas internas (nas pernas), e seis camadas na parte superior (peito).

Arquivo pessoal
Rita e Silva, que escalaram o pico Aconcágua
Rita e Silva, que escalaram o pico Aconcágua
Não levamos barracas de dormir para esta etapa do percurso, porque não se leva este tipo de equipamento para o ataque ao cume. O equipamento levado nessa etapa consistia de rádio comunicador (inclusive baterias sobressalentes), lanches de trilha (barras de proteína, gel), um cobertor de emergência para cada um de nós, além de pilhas extras para as lanternas de cabeça. Calçávamos botas plásticas (marca Koflack, uma das melhores do mercado) com crampon (uma base de ferro colocada no solado da bota plástica, para melhor aderência ao gelo), e luvas mitones, de pena de ganso, por cima de outras três luvas.

Sabíamos que o pôr-do-sol no Aconcágua, nesta época do ano se dá às 21h, não apenas pelas pesquisas prévias que realizamos na área de meteorologia, mas também pela constatação feita in loco durante os dez dias em que ficamos no parque antes de partirmos para o ataque ao cume.

Atingimos o cume por volta das 17h30, com céu claro. Estão nos acusando de ficarmos 2 horas lá. Isso é um absurdo. Permanecemos lá por apenas 15 minutos, ou seja, o tempo suficiente para fazermos fotos. Éramos os últimos a descer.

Iniciamos em seguida o procedimento de descida, contando com mais três horas de claridade para a descendência segura. Nosso objetivo era retornar pela Via Gran Carreo até o Nido de Condores, onde estávamos baseados. Esta é considerada a rota mais rápida para a descida.

Duzentos metros depois de iniciada a descida, veio uma neblina muito forte, acabando completamente com a visibilidade e baixando bruscamente a temperatura. Por essa razão, comecei a tremer muito de frio e tive convulsões e desmaios. Minhas pernas travaram por conta desse frio excessivo, causado pela queda brusca de temperatura, e fiquei impossibilitada de caminhar.

Primeiramente, Eduardo tentou me reanimar para retomarmos o procedimento de descida. Mas como não conseguia andar, ele decidiu chamar o resgate para nós. Acredito que era por volta das 19h, 19h30.

Fomos informados pela patrulha de que deveríamos descer mais para que eles pudessem fazer algo. Minhas pernas, no entanto, estavam travadas e eu não conseguia andar. Eduardo insistia no pedido de resgate e os guardas insistiam que deveríamos descer mais. Mas, segundo Eduardo, além de ter as pernas travadas, eu desmaiava e acordava a toda hora. O fato de eu ter 1,78 de altura impedia meu marido de me conduzir sozinho para onde os guardas insistiam para que fôssemos, principalmente sem nada enxergar.

Os contatos de Eduardo com o posto de resgate foram ouvidos por todos que estavam no acampamento Plaza de Mulas. Entre convulsões e momentos de lucidez, sempre ouvia o chamado agoniado do meu marido pelo resgate.

Chegamos a nos despedir durante a madrugada. Senti que meu fim estava muito próximo e pedi a ele que procurasse, na escuridão, a nossa máquina digital para ter certeza de que ele teria os nossos últimos momentos registrados.

Mas nós acordamos às 7h30, com muita neve no rosto, fruto da tempestade. Conversamos um pouco sobre as condições em que estávamos e ficamos felizes e gratos a Deus por termos sobrevivido àquela noite de terror.

Posteriormente, ficamos sabendo que, naquela noite, os ventos chegaram a uma velocidade entre 50 e 60 km por hora e a temperatura ficou em torno dos 30 graus negativos. Quando atingimos o cume, antes da neblina chegar, a temperatura no cume registrada em nosso relógio era de cinco graus negativos.

Como que por milagre, eu estava melhor. Eduardo estava muito debilitado, não conseguia ficar em pé. Tentei reanimá-lo, dando um pouco de gelo. Tentei um novo contato com o posto de resgate. Infelizmente, ninguém respondeu. Eram já 12 horas sem resgate.

Devia ser por volta de 7h35, 7h40. Não havia sol ainda e fazia frio. Nesta época do ano, a temperatura lá começa a subir por volta das 9h.

Ficamos parados, totalmente debilitados, aguardando uma resposta do pessoal do parque, quando surgiram dois montanhistas noruegueses, que atenderam meu pedido de socorro, foram ao nosso encontro, em nosso auxílio.

Fizeram avaliação de nossa situação e como eram em dois, decidiram que apenas eu deveria ser ajudada por ter mais chances de vida. 'É a lei da montanha', disse-me um deles. 'A gente ajuda quem tem mais chances de viver', explicou.

Infelizmente, não tive tempo de me despedir do meu amor. Foi tudo muito rápido.

Os noruegueses me colocaram de pé e juntos começamos a descer. Eu ia amparada pelos dois, bastante inconsciente, pois também já estava com princípio de edema cerebral.

Fui levada inicialmente para o refúgio Independencia, onde cheguei desacordada. A partir daí, desse acampamento, a patrulha do parque é quem passou a cuidar de mim.

Recebi uma injeção de dexametasona, indicada para princípio de edema cerebral, e seguimos até o próximo acampamento, que era o Nido de Condores, onde estávamos baseados.

Lá chegando, a patrulha desarmou nossa barraca e carregaram nossos pertences até o acampamento Plaza de Mulas, onde permaneci dois dias aguardando o Eduardo.

Não tenho certeza de quando o Eduardo morreu, em qual lugar exatamente, nem em quais condições. Perguntei a muitas pessoas, à exaustão. Ninguém, no parque, teve a coragem de me informar. Disseram-me apenas que sua morte deve ter acontecido às 11h do dia 7, ou seja, quase 4h depois do meu resgate.

Na Plaza de Mulas, fui encontrada pela montanhista brasileira Helena Coelho, que prontamente me acolheu, com muito carinho e dedicação. Deus a colocou em meu caminho.

Helena me disse que chegou a ver luzes no local, durante a noite, onde eu e Eduardo estávamos, e que mesmo sem saber que éramos nós que estávamos lá, havia ido informar aos guardas que estava vendo luzes sem movimentação na Canaleta.

Sinceramente, não sei o motivo que impediu a patrulha de resgate de subir em nosso auxílio. Prefiro pensar que chegou a hora do Eduardo; que ele morreu feliz por ter conquistado um grande sonho, mais, uma vez, ao meu lado.

Entretanto, gostaria muito que o nosso caso servisse de alerta para o futuro. Alerta no sentido de que o Parque coloque à disposição dos montanhistas mais equipes de resgate na alta temporada. Gente de montanha, alpinistas voluntários que amem o esporte e que estejam aptos a prestar socorro, independente dos obstáculos que a montanha impõe.

Muita gente me pergunta como passei a ver o montanhismo a partir desse novo momento em minha vida. Estou ferida. Quem me conhece e conhecia o Eduardo sabe que minha alma está machucada. Perdi o grande amor da minha vida e nada --absolutamente nada-- vai trazê-lo de volta.

Mas ao mesmo tempo estou em paz e, assim que me recuperar fisicamente, pretendo voltar às montanhas. Porque foi o Eduardo quem me ensinou a gostar de montanha. Foi ele quem me ensinou que estar na montanha é estar mais perto de Deus.

Rita Bragatto"

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