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08/03/2007 - 10h50

Voz feminina diferencia produção artística

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NOEMI JAFFE
Especial para a Folha de S.Paulo

Geralmente, sou contra a maioria das denominações que tentam determinar a produção artística de acordo com gênero, etnia, credo e até mesmo nacionalidade. Não acho que uma obra especialmente o conjunto de uma obra possa se identificar como cristã, muçulmana, negra, homossexual, mesmo quando esses temas são o seu conteúdo preferencial. Penso, de forma bastante óbvia, que um trabalho artístico é, antes de tudo, bom ou não, com todas as implicações históricas, epistemológicas e pessoais que possa haver nesta qualificação. Bom não é necessariamente certo, nem belo, nem único.

São muitas outras coisas que não constituem exatamente o objeto deste texto, mas certamente uma obra não pode ser considerada boa por ser brasileira ou judaica. Continuo achando, com Manuel Bandeira, que "é preciso fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero" e, à falta de critérios melhores, esse, para mim, tem sido suficiente. Um bom trabalho artístico precisa desesperar. E aí, quando falo em desesperar, penso em muitas coisas. Deixar de esperar e de manter-se na solidez do conforto conhecido.

Deixar de ter esperança, essa superstição hollywoodiana. Deixar de pensar que uma obra de arte deve apenas "fazer bem" e reafirmar ao espectador suas sempre precárias muletas. Sei que esse critério também não é exaustivo e que obras que fazem bem também podem ser boas. Mas mesmo fazendo bem, é preciso um pouco de desespero.

Ainda assim, com todas as ressalvas feitas, não consigo evitar uma contradição. Existem obras que, a despeito de minhas próprias convicções, considero como femininas. Elas podem ser produzidas por mulheres, falar sobre mulheres, mas não é por isso que as identifico desta forma. Ouço nelas uma linguagem feminina.

Sei que vou esbarrar em preconceitos, generalizações, mas acho que essa voz existe. Quando Clarice Lispector escreve: "Escrever existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo como escrevo sem saber como e por quê --é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação. É assim:?". Quando ela diz, numa das melhores definições da sua dificuldade em lidar com os fatos (e a de tanta gente!): "Queria escrever uma história que começasse com 'era uma vez'. Mas então escrevi: Era uma vez um pássaro, meu Deus!", não posso deixar de pensar que essa é uma literatura feminina. Por quê?

Acho que a mulher (ou melhor, a "feminilidade"), aquela que se guarda e a que se entrega, a que cuida e a que descuida, a que fica e a que vai a mulher tem uma linguagem receptiva, continente, o que provoca, atualmente, uma série de contradições. Talvez essa continência venha de sua anatomia. Talvez do papel histórico que ela foi obrigada a desempenhar durante séculos. Mas sua voz é uma voz de quem pergunta, mesmo que não aceite as respostas. A mulher quer ouvir o mundo, esse mesmo mundo que ela nunca consegue entender, até quando domina seus instrumentos e mediações.

Ela oscila permanentemente entre uma demanda entranhada, uterina, à qual ela pode reagir com choro, abraços ou gritos e uma demanda externa que se traduz em ação e ousadia. As mulheres são mais ousadas que os homens mesmo quando permanecem quietas. O homem age porque precisa, como um bicho que precisa defender seu território. A mulher pergunta: mas é assim mesmo que preciso fazer essa toca? Daí, algumas vezes, ela não age; mas sua não-ação é uma grande ousadia.

Quando Mira Schendel diz, apresentando um de seus trabalhos, "o que me preocupa é captar a passagem da vivência imediata, com toda a sua força empírica, para o símbolo, com sua memorabilidade e relativa eternidade' ; quando Lygia Clark escreve, numa carta imaginária a Mondrian: "se o homem não pode sentir como é importante esse desenvolvimento interior --chamemos de uma forma que nasce com a pessoa como um punho fechado, talvez se abrindo no primeiro tempo com o próprio nascimento-- então ele jamais poderá atingir sua plenitude", mas mais importante do que seus textos quando elas realizam estes momentos de abrir os punhos e de dizer a relativa eternidade das coisas em seus trabalhos, digo que sua linguagem é, além de tudo o mais, feminina. Algum homem entende o que é "a relativa eternidade"? Se entende, ou compreendeu as mulheres, ou está mentindo.

Em "Ondas Paradas de Probabilidade", Mira Schendel dizia querer mostrar a visibilidade do invisível. São milhares de fios de nylon pendentes do teto, formando uma espécie de parede que pode ser atravessada, acompanhados de um texto bíblico em que o profeta Elias finalmente percebe a presença de Deus após sentir o sopro do vento.

O trabalho efetivamente dá a ver o invisível e detém, por um instante elástico e duradouro, as ondas de probabilidade. Naquele instante duro, o acaso pára. O encontro que faz com que o invisível se torne visível é feminino. Se Eva foi criada a partir da costela de Adão, isso não a diminui como criatura, antes aumenta a potência do nó de que a mulher é constituída: ela é uma impossibilidade possível e vice-versa. Por isso, seu olhar pergunta e procura; por isso ela ri e chora ao mesmo tempo; por isso ela sempre pode e não pode.

Não é qualquer trabalho artístico que pode conter essa trama quase absurda. Um paradoxo masculino é assumido, como quem chega e diz: "Olá, sou um paradoxo!", ou então: "Não chegue perto de mim. Sou um paradoxo." Já o paradoxo feminino nem sabe direito o que é, se é ou gostaria de não sê-lo.

Como disse antes, é inevitável esbarrar em inúmeras generalizações, quando se aborda um assunto como esse. E sei também que acabei por não definir nada muito claramente. Minha idéia principal é o caráter receptivo e paradoxal que subjaz a um discurso que estou chamando de feminino. As perguntas e as contradições compõem o quadro da receptividade. Não se trata, de forma alguma, de passividade, mas de continência. Uma continência que ocorre mesmo quando a mulher quer sair, largar tudo e virar o jogo.

Sempre gostei de um tempo verbal menos trabalhado pelas gramáticas e que existe pouco na língua portuguesa: o particípio presente. É uma mistura de passado e presente, de gerúndio e particípio; algo que está em permanente estado de acontecimento: o sol poente, nascente, a estrela cadente, o quarto crescente. Nem todo mundo sabe, mas "contente" é o particípio presente de conter. Contente é aquele que contém suficientemente e se satisfaz com isso, sacia-se. Acho muito bom que, por alguma derivação cultural, saciado tenha se tornado "alegre", aquilo que hoje entendemos por contente e que pode não ter nada a ver com satisfeito ou preenchido. Quero pensar que a mulher é um ser "contente" em ambos os sentidos, com todas as complicações que isso traz. Parodiando Tom Jobim, sintetizo: "Ser mulher é uma merda, mas é muito bom".

NOEMI JAFFE é escritora e professora de literatura, autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas Pequenas" (Hedra)

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