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10/11/2002 - 10h01

Especulação imobiliária invade favelas do Rio

MARCOS SÁ CORRÊA
Especial para a FOLHA

Os pobres criaram no Rio de Janeiro um próspero mercado imobiliário. Escondido nas favelas, onde sempre foi o segredo mais mal guardado da cidade. Cresce sem parar para cima e para os lados, subindo os morros e transbordando os subúrbios. Mas para achá-lo o Instituto Pereira Passos, laboratório de urbanismo da prefeitura, precisou procurar o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano ou Ippur, centro de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

De repente, o que era óbvio ficou oficial. "É uma operação econômica", diz um relatório sobre as 190 manchas de construções suspeitas que apareceram nas aerofotografias do mapa do município entre 1995 e 1999. Visitadas por fiscais, 77 já estão fichadas no Sistema de Informações sobre Assentamentos de Baixa Renda, o cadastro de favelas do Instituto Pereira Passos.

O resto ainda está na fila da investigação. Mas o diretor Paulo Bastos já viu o bastante para saber que "uma em cada três novas favelas surgidas na cidade nasce por incorporação". Nas bordas da cidade onde ainda há grandes terrenos, os próprios donos vendem os loteamentos antes que os invasores pulem a cerca.

Ele dá exemplos: "A Santa Isabel, junto ao largo do Pechincha, em Jacarepaguá: o proprietário começou a lotear em 1993, o Censo 2000 contou 866 moradores em 274 domicílios, que é densidade de favela. D, no Recreio dos Bandeirantes: pela entrevista de campo, foi desapropriada por um vereador, que permitiu a compra do direito de posse. Vila São Sebastião, em Anchieta: está com 1.200 pessoas em 300 casas, desde que o dono morreu e o imóvel ficou por conta do caseiro, que o vendeu aos pedaços".

A lista é longa e parece um guia do oportunismo carioca. Mas cobre só uma parte dessa nova história da especulação imobiliária. A outra o economista Pedro Abramo, do Ippur, está descobrindo bem no coração do Rio de Janeiro, onde, por falta de espaço para se espalhar, o mercado se rendeu à livre concorrência.

É quase uma cidade paralela, com critérios imobiliários próprios, onde vive uma parte da população que nunca teve letra do samba, discurso de político ou pesquisa de sociólogo. Gente que paga para morar em favela o que pagaria por um pequeno apartamento no centro ou uma casa no subúrbio com a papelada em ordem, mas prefere ficar na informalidade. Por que? "Antes de mais nada para continuar "próxima de seus próximos'", responde Abramo.

Cartografia dos pobres
Nesse mercado, a cotação dos vizinhos entra no preço dos imóveis e as construções irregulares, que nunca ficam prontas, valem mais do que as acabadas porque podem crescer junto com as necessidades da família, com a liberdade que lhes confere a total ausência de posturas municipais. Lá, o metro quadrado mais caro do Rio de Janeiro não está na zona sul nem de frente para o mar. Fica em São Cristóvão, bairro que saiu de moda no Segundo Reinado.

Sua clientela vai mal, mas ele vai bem. "O mercado regula quem entra e quem sai da favela", explica Abramo, que, entendendo como ele funciona, pretende decifrar "a cartografia dos pobres na cidade".

Meteu-se nessa empreitada por acaso, quando, há cinco anos, o Banco Interamericano de Desenvolvimento lhe encomendou uma avaliação do Favela-Bairro, principal programa de urbanização da prefeitura. E não largou mais o assunto. "Era um mundo inteiramente novo para mim e se revelou tão interessante que acabou arrastando todo meu trabalho para esse lado", explica.

Ele é professor do Ippur, onde coordena com essa pesquisa o Observatório Imobiliário de Políticas do Solo. Está escrevendo "Teoria Econômica da Favela", livro pioneiro sobre o comércio da favela, que será publicado por sua editora na França, a l'Harmattan, que já tem no catálogo dois títulos seus. Um deles, "Ville Kaleidoscopique", mesmo sem tradução para o português ganhou, em 1998, no Brasil o prêmio de livro do ano da Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação.

Fórmula exportável
Pedro Abramo é uma prova de que economista também sofre mutações. Ele não parece colega dos PhDs que mandaram no país por oito anos. Doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, tem 42 anos e ainda usa rabo-de-cavalo. Pegou um tema gastou e o tornou mais leve, tirando-lhe o lastro das interdições politicamente corretas. Consegue falar de favelas durante horas sem usar palavras como "comunidade", "carente" e outras senhas dos especialistas na matéria.

Patenteou no Rio de Janeiro uma fórmula que, como a própria favela, pode ser exportada para todo o país. Aliás, já estão em campo, por controle remoto, estudos semelhantes em São Paulo, Belém, Porto Alegre e Recife.

E é provável que Caracas, Bogotá e Cidade do México também experimentem o método de Abramo, marcando em cada cidade os múltiplos cruzamentos do mercado informal com o formal.

Poder do tráfico
Os interessados que se preparem. A receita é complicada, na teoria e na prática. Exige fazer centenas de entrevistas com as pessoas que estão comprando, vendendo ou alugando imóveis em favelas e isso, pelo menos no Rio de Janeiro, implica, antes de mais nada, entrar onde as leis do mercado se entrelaçam, mas não se confundem com as do tráfico. Separá-las é que são elas.

"Temos de pedir permissão sempre, a cada visita, mesmo nas favelas mais calmas", diz ele. Teoricamente, segundo a tabela do Ippur, elas se classificam em cinco patamares de segurança, das tranquilas às fechadas.

Mas, na prática, Abramo admite serem "raríssimas as que não têm controle do tráfico". Por isso, em todas elas, seus entrevistadores, recrutados entre alunos de graduação, mestrado e doutorado, só entram uniformizados, usando camiseta, boné e pasta com o logotipo da UFRJ. Vão acolitados por um guia local, que a associação de moradores indica. E só trabalham de manhã. À tarde, o tráfico acorda, a polícia pode chegar de uma hora para outra e os favelados se recolhem.

Negócios na favela
Já examinou assim 30 favelas, cobrindo todo o miolo urbano do Rio de Janeiro. Foi discutir negócios onde as ciências sociais só costumam procurar miséria.

Ouviu uma população que paga mais caro por tudo o que chega à sua porta, da água ao material de construção, passando pela mão-de-obra. É isso mesmo: "Servente cobra mais pelo serviço na favela porque ali dentro não entra o concorrente". Ele ganhou até informações que não estava pedindo, como o destino que os gerentes dos pontos de drogas dão ao dinheiro que ganham no tráfico. É com essas aplicações que se procriam as kombis de lotação nos morros e os táxis no asfalto.

Mas o comércio das favelas é assunto da próxima pesquisa. Já acertada com o Instituto Pereira Passos, ela pode mostrar que, abaixo do traficante, quem manda na favela é o lojista que mantém nas estradas de acesso ao Rio verdadeiras caravanas de caminhões carregados de tijolos. Por enquanto, Pedro Abramo demonstra como a falta de opção se combina com o exercício do direito de escolha da clientela para fazer uma favela crescer simplesmente por estar onde está.

Dos compradores recentes de casas que responderam ao questionário, 54% vinham de outros locais nas mesmas favelas. Essa é mais ou menos a mesma taxa de bairrismo que existe no mercado formal. Mas não é o que o senso comum espera encontrar entre favelados. Mesmo entre os entrevistados que venderam seus imóveis, 25% esperavam ficar por ali mesmo.

Com tanta procura para tão pouca oferta de espaço, os preços sobem e atravessam com mais frequência do se supõe a barreira da informalidade. Mesmo o que, visto de longe, parece pobreza e desordem, de perto vira vantagem.

Abramo viu isso no Quitungo, um conjunto habitacional na Vila da Penha, onde cerca de 40 anos atrás se instalaram os antigos moradores da Catacumba, na lagoa Rodrigo de Freitas: "Com o tempo, nasceram duas favelas entre os prédios regulares, criados pelas famílias dos removidos, que foram se instalando ao redor de seus parentes. E hoje as casas nas favelas valem mais do que os apartamentos porque elas oferecem mais liberdade urbanística. Um morador faz um puxadinho para vender alguma coisa. Outro constrói um quarto para alugar. Tem muita gente que paga a casa passando adiante a laje. E em favela laje é solo criado".

Chefes de família
Ao contrário do mercado formal, nas favelas, as mulheres compram mais casas do que os homens, reflexo natural das estatísticas sociais que lhe passaram a chefia da maior parte das famílias brasileiras. Mas elas geralmente vendem as mais caras e compram as mais baratas, não só por terem menor renda, como pelo dom de valorizar um endereço com sua presença.

"Estou convencido de que as redes de trocas entram no preço desses imóveis porque na favela a economia da reciprocidade em grande parte substitui a monetária", diz Abramo. "E as mulheres têm mais capacidade do que os homens de formar essas redes de relações com a vizinha que empresta sal ou toma conta dos filhos enquanto a mãe trabalha." Ao sair, elas vendem esse patrimônio intangível como os comerciantes, junto com as lojas, passam o ponto.

Tudo somado, segundo o economista, "ninguém entra nem sai de favela sem passar pelo mercado". Até as diferenças de renda, que são altas entre os favelados, a concorrência vai comprimindo automaticamente, à medida que aperta a competição pelas vagas mais difíceis.

Nesse caso, saem os mais ricos e os mais pobres. Sobra a faixa dos três salários mínimos, claramente delineada num gráfico de Pedro Abramo. "Os de cima vão para lugar melhor, os de baixo, para pior, e as favelas consolidadas vão se tornando mais homogêneas", ele conclui, reconhecendo o papel do mercado no governo dos pobres exatamente na hora em que a eleição presidencial o tirava do poder em Brasília.

  • O jornalista Marcos Sá Corrêa é colunista do site No Mínimo. Foi editor-chefe do "Jornal do Brasil", diretor de redação de "O Dia", além de colunista das revistas "Veja" e "Época"
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