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13/01/2003 - 04h14

"Cidade de Deus" gera discriminação, dizem favelados

FERNANDA MENA
da Folha de S.Paulo

"Cidade de Deus", o filme brasileiro recordista de público desde 1990 (mais de 3 milhões de espectadores), ao retratar uma condição social que, até então, poucos haviam visto tão de perto -a guerra travada pelo tráfico de drogas dentro de favelas brasileiras-, acabou se voltando contra parte das próprias vítimas de tal situação.

Os moradores da Cidade de Deus de verdade, onde aconteceram as histórias narradas no filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund (baseado no livro homônimo de Paulo Lins), afirmam que, depois da estréia da obra, tornaram-se alvo de discriminação.

O preconceito se revelaria tanto no comportamento da polícia, que, segundo eles, promove ações cada vez mais ostensivas na favela, quanto na hora de conseguir emprego ou crédito.

"Esculacharam a favela!", disse à reportagem da Folha um comerciante de 45 anos, que preferiu não se identificar. "Depois disso aí, quando souberam que eu era da Cidade de Deus, ficou mais difícil abrir um crediário."

"Tem casos de meninos aqui que foram procurar emprego e, quando leram no currículo o endereço onde moravam, disseram apenas que iriam enviar uma carta com o resultado da seleção. Os meninos estão esperando essas cartas até hoje. E elas nunca vão chegar", conta o líder comunitário Jorge Vilela, 42, que desde 1971 vive na CDD -como os moradores chamam a favela.

Para estudante Paulo (nome fictício), 19, o pior foi a mudança da abordagem policial com os moradores. "A gente já não era tratado pela polícia de uma maneira legal. Parece que piorou ainda mais. Agora, eles acham que todo mundo aqui é bandido, traficante ou está envolvido com o tráfico."

Ao focar o enredo do filme nos traficantes e bandidos da CDD, o filme, de acordo com os moradores, generalizou o banditismo.

O livro de Paulo Lins, ex-morador da Cidade de Deus, no qual o filme se fundamenta, foi baseado em uma pesquisa realizada sob a orientação da antropóloga Alba Zaluar, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Segundo um levantamento feito por Zaluar e Lins nos anos 80, menos de 2% das pessoas que viviam na favela tinham alguma relação com o tráfico ou com outra atividade criminosa.

Polícia e emprego
De acordo com o tenente-coronel Marco Aurélio Moura, comandante do 18º DPO (Destacamento de Policiamento Ostensivo), que fica dentro da Cidade de Deus, a polícia não aumentou nem diminuiu as operações.

"O número de apreensões, prisões, operações e ocorrências é bastante similar ao longo dos últimos oito meses, ou seja, antes e depois do filme", diz.

Segundo Moura, o que ele percebeu foi que os moradores "repudiaram o filme". "Muita gente veio falar comigo. Eles acham que o filme colocou a CDD muito em evidência, mas a grande preocupação da comunidade é conseguir emprego. Eu até intercedi na Associação Comercial e Industrial de Jacarepaguá para que não considerassem o conteúdo do filme na hora de selecionar o pessoal para empregos."

O diretor-executivo da associação, Augusto Torres, 69, diz que não há restrições a moradores da Cidade de Deus nas empresas da região. "Mas acredito que, fora daqui, a coisa seja diferente", pondera. "Se algum jovem procurar emprego em um shopping, por exemplo, e o empregador identificar que ele mora na Cidade de Deus, é bem possível que prefira ter o jovem o mais longe possível."

Nome aos bois
Os moradores da Cidade de Deus criticam o filme não por ele mostrar a situação de quem vive em favelas dominadas pelo tráfico, mas por ter dado nome e endereço aos bois.

De acordo com José Neves, 75, presidente da União Comunitária da Cidade de Deus e morador do bairro há 30 anos, o filme "desmoralizou a comunidade e marginalizou seus moradores ao mostrar uma situação que não corresponde à realidade atual da CDD". "O autor do livro e o diretor do filme se deram bem, mas a comunidade ficou na pior."

José Francisco Santana, 61, vice-presidente da União Comunitária e morador da CDD há 31 anos, diz ter ficado chocado. "A gente quer melhorar a imagem da Cidade de Deus e trabalha 24 horas por dia para isso. E, quando a gente está começando a conseguir um resultado, vem um filme desses, contando várias mentiras, e coloca um trabalho de anos abaixo."

O comerciante Luís Antônio, 42, diz estar se sentindo usado. "Eles exploraram a história da comunidade, não fizeram o filme aqui e não deram nenhum benefício para a gente."

Mesmo entre os adolescentes da Cidade de Deus, que em sua maioria se empolgaram com toda a ação do filme, há uma certa desconfiança. Marília (nome fictício), 12, achou o filme "legal", mas pouco representativo do lugar onde mora. "Agora, meus colegas da escola acham que aqui é barra-pesada, que todo mundo rouba, que isso, que aquilo. Tudo por causa das coisas que aparecem no filme. E disso eu não gostei, não."

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