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19/01/2003 - 03h50

Indústria barra restrição ao fumo com pesquisas suspeitas

FABIANE LEITE
MARIO CESAR CARVALHO
da Folha de S.Paulo

Esta é uma história de fraude contra a saúde pública, corrupção científica e impunidade. A indústria do cigarro atacou o banimento do fumo em espaços fechados no Brasil usando como argumento científico pesquisas que ela própria custeara.

As pesquisas, conduzidas por professores da USP e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, eram feitas para mostrar que a concentração de fumaça de cigarro em recintos fechados não era tão grande como apregoavam os estudos independentes.

O objetivo era provar que não havia necessidade de banir o cigarro desses ambientes, que é possível uma "convivência em harmonia", slogan de um programa da indústria. A Organização Mundial de Saúde diz que essa convivência não é possível, já que o fumo passivo aumenta em 40% o risco de câncer de pulmão e em 30% as doenças coronarianas.

Segundo dois especialistas brasileiros e um norte-americano ouvidos pela Folha, a conclusão de que o nível de nicotina é baixo ou insignificante é uma cortina de fumaça, já que o tabaco é o principal poluidor de ambientes fechados.

De 1991 a 2000
Documentos obtidos pela Folha mostram que essa política, iniciada em 1991 na América Latina, continuou até 2000. Nenhum pesquisador conseguiu descobrir quanto a indústria investiu no projeto. O que se sabe é que o orçamento sugerido para 1994 era de US$ 680 mil.

O desmonte da estratégia da indústria foi feita por duas frentes de pesquisadores independentes, cujos trabalhos foram editados em dezembro do ano passado:

1. o cardiologista Stanton Glantz e o clínico Joaquin Barnoya, ambos da Universidade da Califórnia em San Francisco, na costa oeste dos Estados Unidos, publicaram na revista científica "Tobacco Control" um artigo com documentos em que os fabricantes debatem como cooptar cientistas para evitar o banimento do cigarro de ambientes fechados;

2. a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde) editou o livro "La Rentabilidad a Costa de La Gente" ("O Lucro a Custo das Pessoas), no qual Stella Aguinaga Bialous e Stan Shatenstein revelam que a indústria derrotou a tentativa dos governos de regulamentar o tabaco com fraudes e lobby junto a políticos e à mídia.

Os trabalhos mostram que a Philip Morris e a BAT (British American Tobacco), grupo que controla a Souza Cruz no Brasil, tinham uma estratégia conjunta, o Projeto Latino, para minar a tentativa de banir o tabaco em sete países da América Latina: Brasil, Argentina, Chile, Venezuela, Equador, Guatemala e Costa Rica.

À época, já estava em curso uma política mundial da indústria para minar a idéia de que o fumo passivo faz mal aos não-fumantes.
A diferença é que na América Latina a ação das empresas teve um caráter preventivo.

"O projeto foi um sucesso porque o fumo não foi banido de ambientes fechados em nenhum país da América Latina", diz Barnoya. Segundo ele, "o combate ao fumo passivo é a área mais atrasada" da saúde pública na América Latina. "Não é como a má nutrição, que é um problema econômico, decorrente da pobreza. Tabaco é um caso político, e a indústria venceu a ciência nessa disputa", afirma.

Stella Aguinaga Bialous, uma enfermeira brasileira que fez doutorado em San Francisco e é consultora da Organização Pan-Americana de Saúde, diz que a ação da indústria foi tão eficiente que convenceu até médicos.
"Pessoas da área da saúde acreditam que a ventilação resolve o problema do cigarro em ambientes fechados, o que é uma mentira. A indústria conseguiu disseminar a dúvida, e isso é difícil de reverter", diz Stella.

Os segredos da indústria do cigarro começaram a vir à luz graças ao acordo feito entre os Estados americanos e os fabricantes em 1997. Como indenização às fraudes que cometera contra a saúde pública, a indústria aceitou pagar aos governos estaduais uma indenização de cerca de US$ 368 bilhões por 25 anos (a maior da história) e concordou em revelar todos os seus documentos.

Os textos sobre a estratégia para a América Latina foram encontrados numa busca em mais de 40 milhões de documentos que a indústria mantém em sites na internet e num arquivo em Guildford, nos arredores de Londres.
Os textos chocam pela franqueza com que executivos debatem seus planos.

Num dos primeiros documentos sobre a estratégia para combater os espaços livres de fumo, encontrado pela Folha, executivos das fábricas defendem já em 1987 uma "campanha internacional coesa" para combater as leis que limitem os espaços para fumar. O objetivo da campanha "é enfatizar as dúvidas que devem ser expressas no debate científico sobre os alegados males da fumaça de cigarro no ambiente".

Em 1988, um representante da indústria alemã, Franz Adlkofer, disse numa reunião em Londres que a indústria está interessada em "bom material para relações públicas, não em boa ciência".

Discurso idêntico a esse direcionou o Projeto Latino. Os 15 cientistas da região eram pagos não só para pesquisar. Eram escolhidos pela aparência, pela habilidade de falar bem para a televisão ou pela capacidade de obter espaço em jornais. Pesquisar não era a única atribuição. Deviam divulgar artigos em revistas científicas, dar entrevistas e escrever textos em linguagem acessível.

Em seminário realizado em parceria com a Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro em 1994, a indústria fez questão de enfatizar que o tabagismo não era uma questão importante para o Brasil diante de outros problemas de saúde.

Fachada acadêmica
Os textos produzidos pelos cientistas não eram conferidos por seus pares, como reza a tradição acadêmica, mas por um escritório de advocacia de Washington, chamado Covington & Burling. O medo era que as pesquisas servissem de munição a advogados que processam os fabricantes.

Para que os fabricantes não aparecessem manipulando cientistas, o que jogaria a credibilidade do projeto no lixo, advogados repassavam o dinheiro que financiava as pesquisas para uma entidade que tinha ares acadêmicos, o Center for Indoor Air Research (Centro para Pesquisas sobre Ar em Ambientes Interiores), conhecida como Ciar, suas iniciais em inglês.

Promotores americanos descobriram que o Ciar era mais uma fachada usada pela indústria para que suas opiniões soassem científicas. Em 1998, o Ciar foi fechado sob acusação de fraude.

Os estudos que o centro financiou também não passam de fraude científica, como define James Repace, professor da escola de medicina da Tufts University e especialista em fumo passivo.

"Se a indústria do tabaco pagou o trabalho e o trabalho é sobre poluição ambiental de cigarro, está garantido que é uma fraude", disse à Folha. Os únicos trabalhos não fraudulentos, segundo ele, receberam o carimbo de "secreto da companhia" ou "sigilo da relação entre cliente e advogado", o que não ocorre com nenhuma pesquisa feita no Brasil.
 

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