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25/01/2003 - 03h05

"Viver aqui é viver entre luz e sombra", diz Tata Amaral

TATA AMARAL
Especial para a Folha de S.Paulo

São Paulo é mesmo superlativo. Aqui tudo é muito. É a maior cidade da América do Sul, a mais populosa. Tudo aqui tem mais: violência, conivência, indiferença, estresse, saco cheio, medo também. Trombadinha não tem mais: caiu em desuso. Foram trocados pelos meninos com canivete no farol, pela abordagem direta, pelo assalto a mão armada. Mas isso não é privilégio de São Paulo, que, aliás, das brasileiras, é a mais cosmopolita, a que mais tem museus, cinemas, salas de espetáculos, galerias...

Mais público para isso também. Tem mais diversidade cultural, mais artistas, produtores culturais, industriais, operários, bancários, comerciantes, ambulantes, desempregados, trabalhadores informais, marginais, traficantes, mendigos, meninos de rua, prostitutas, cabeleireiros, marceneiros... Tem mais lojas, magazines, shopping, estacionamentos, restaurantes. (Ah! Os restaurantes de São Paulo...) Mais dinheiro, mais miséria. Viver em São Paulo é aprender a viver entre a luz e a sombra.

Olho pro céu para saber se levo o guarda-chuva e me deparo com os fios da Net, da TVA, da Eletropaulo, da Telefônica, os gatos dos vizinhos. Tudo vai construindo uma trama aérea interminável que se prolifera, se acrescenta. E os prédios que de tão altos tampam o sol -e a visão das nuvens- da minha casa! Não tem graça o céu de São Paulo.

Se ao menos os prédios fossem mais humanos... Três ou quatro andares é uma medida humana. Um ou outro arranha-céu, vá lá. Ali do lado do Martinelli, ou na Paulista. Mas para onde quer que a gente olhe, tem prédio. E essa visão não tem nem mesmo a magia de um filme de ficção científica. E os outdoors, luminosos ou não? Um excesso. Às vezes a gente nem consegue prestar atenção às placas de sinalização -as únicas que realmente interessam-, tal a quantidade de estímulo visual a que somos submetidos.

Aqui tem muita ganância, muita gente querendo vender coisas. Além disso, tem muito carro, muito ônibus, muita moto, muita ambulância, muito caminhão, muita bicicleta. Todos acelerando, buzinando, tocando sirenes... Reclamam das ruas. Mas e as calçadas? Sou pedestre militante, não sei dirigir. Ando de ônibus, metrô, táxi, muitas vezes a pé. Olha, difícil fazer um percurso com carrinho de feira por aqui. Uma buraqueira só. O cotidiano em São Paulo não é fácil.

Mas o coração da América Latina é aqui. Vá lá que o centro geodésico da América do Sul fique na Chapada dos Guimarães, a capital em Brasília, o pulmão do mundo na Amazônia, que a mais linda cidade seja o Rio de Janeiro, a mais agradável, Salvador, a mais combativa, Porto Alegre, a modelo de consumo, Curitiba, a que tem mais mangueiras, Natal... Mas o coração está aqui. Não por São Paulo ser a locomotiva do Brasil, a cidade que não pode parar, ou porque tenha importância econômica capital, ou por ser uma das mais antigas do Brasil, nem mesmo por ser a meca dos emigrantes esperançados de um futuro melhor. Nada disso. O coração da América Latina é aqui porque esta é a cidade que mais emoções provoca: mais amor, mais horror.

Eu mesma, adoro e detesto São Paulo. Adoro sua miscelânea sonora, adoro sua hospitalidade, que a todos acolhe -às vezes de uma maneira madrasta, verdade, mas acolhe. Adoro as vilas do meu bairro, adoro as casinhas com quase extintas roseiras na frente, choro quando terraplanam o jardinzinho para virar garagem; adoro o Brás, o Pacaembu, a Cidade Tiradentes; adoro mostrar meus filmes para o público de São Paulo, tão solidário. Adoro perambular pelas calçadas escangalhadas, tomar o metrô (e a estação Sumaré, que linda!), adoro ir ao cinema. Adoro as azaléias em maio, os ipês de novembro, os manacás de janeiro. Adoro os canteiros das grandes avenidas e as palmeiras que a Marta está plantando. Adoro o centro da cidade. Adoro o Centro Cultural São Paulo, o Copan, o Vale do Anhangabaú. Adoro trocar idéias com o cobrador do ônibus, discutir a possível guerra contra o Iraque com o dono da padaria. (As padarias de São Paulo, o café em geral bem tirado, o cheiro do pão...) Adoro o paulistano, sua pressa e sua cordialidade.

Quero viver -e vivo- em São Paulo. Mas quero tanto que esta seja uma cidade melhor... Que tenha menos edifícios, mais árvores, mais praças, menos automóveis, mais metrô. Quero que o rio Tietê, o Pinheiros, o lendário Tamanduateí tenham águas límpidas e margens acolhedoras. Por falar nisso, e as plácidas do Ipiranga? Quero que recuperemos um pouco da topografia original da cidade. Quero que todos tenham emprego e que não haja fome, que todas as casas da periferia tenham luz, saneamento, que sejam pintadas e, como o Lula, quero que todos possam comer. Quero que não haja mais meninos de rua nem atropelamentos. Quero que o céu de São Paulo seja mais livre de fios, de outdoors... Quero mais beleza, mais calma, mais prazer. Quero que todos queiram e possam ir ao cinema, ao teatro. Quero cinemas em todos os bairros centrais e da periferia. Quero viver e fazer filmes aqui por muitos e muitos anos.
Tanta coisa eu quero porque, preciso dizer, eu adoro São Paulo.

TATA AMARAL é cineasta
 

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