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25/01/2003 - 03h08

"Cidade abriga e desabriga milhões", diz Bia Lessa

BIA LESSA
Especial para a Folha de S.Paulo

Nasci na Pro-Matre Paulista e, nos meus primeiros 20 dias, fiquei hospedada na casa de minha tia Cida e de meu amado tio Miguel. Eles moravam na avenida Paulista, em um prédio de esquina onde hoje, no térreo, há um McDonald's.

O resto de minha primeira infância passei em Avaré, vindo à capital para comprar sapatos na rua Augusta, ir a uns concertos matinais com meu avô Procópio no Teatro Municipal. Concertos que me entediavam e me amedrontavam. O Mappin, o Canal 7. O dia 7, no Canal 7, na casa de minha avó, que morava na Cônego Eugênio Leite com a Rebouças.

A cidade grande, e aquele pão maravilhoso com casquinha que encontrávamos em todas as padarias. O que será que o padeiro faz com o pão daqui? Por que o pão de minha lancheira de todo dia é mole e não estala na boca?

Aos 9 anos, com meu irmão Sergio, fomos pela primeira vez sozinhos ao cinema em São Paulo. Tomamos um ônibus, depois outro, nos perdemos e vimos "Deu a Louca no Mundo". Minha mão suava e eu andava pelo meio daqueles prédios como se de fato estivesse conquistando algo muito decisivo (até então, o máximo que tínhamos feito, era ir a missa na Praça da Matriz sem meu pai e minha mãe, que não gostavam nada de padres e igrejas) e, naquele momento, era a mão de meu irmão que me conduzia para a liberdade. Andávamos por lugares desconhecidos, onde não éramos notados, e isso nos tornava mais cúmplices.

No Pandoro, meu pai me levava para comer umas empadinhas de massa folhada, enquanto ele conversava com uns amigos que me pareciam muito distantes. No Pandoro, o Fernando Zarif me levou para tomarmos um "negrone", às nove horas da manhã, antes de enfrentarmos a Anhanguera até Campinas, onde iríamos encontrar o corpo do meu pai e o cobrir de terra. No caminho da Anhanguera -"estrada muito moderna", dizia minha mãe (antes de tudo o que foi acontecendo com ela)- tinha uma fábrica da Etti muito linda, toda iluminada. Nos dava um orgulho danado de ser paulista.

Nessa estrada, banquinhas de frutas com espécies que não encontrávamos em Avaré e que papai ia nos apresentando: "Essa é cereja, essa, framboesa". Naquele momento, as caixinhas de frutas pareciam caixõezinhos, e o carro passava rápido por aquelas montanhas verdes, e eu me lembrava de meu pai. "Bia, quando você crescer não freie na curva, olhe como eu faço... Aquilo é plantação de eucalipto, que serve para fazer papel... Já estamos passando por Jundiaí!!!!"

No Pandoro, encontrei meu pai aos prantos quando se separou de minha mãe. Encontrei meu primo, com quem casei, e me falou pela primeira vez de um arquiteto genial, Paulo Mendes da Rocha, que eu deveria conhecer. Fazíamos um tour arquitetônico, a casa no Butantã, o prédio da Consolação. O Mube ainda não existia.

Depois, o frio que doía no meu corpo. Como doía... eu chorava de frio. Minha mãe me deixava na 9 de Julho, às seis e meia da manhã, e eu pegava um ônibus até Santo Amaro para estudar no Colégio Anglicano. Segundo minha mãe, era o melhor colégio de São Paulo. Com educação não se brinca! O colégio é longe, mas é um colégio que ensina a pensar. Não tínhamos dinheiro. Minha mãe, separada, dava aula em muitos lugares, e íamos conhecendo a imensidão da cidade.

Um mar de prédios, diz a Anna Mariani, minha amada amiga. Através de seus olhos aprendo a ver muitas coisas. Aprendo a me ver também. E teve o dia em que vi os olhos do meu pai de fato olhando pra mim como se eu tivesse crescido, e eu fiquei com medo porque vi que estava velho e fraco.

"Vai filha eu tô orgulhoso de você." E o Kalil entrou no camarim e disse a meu pai que eu tinha feito um trabalho especial. Encontrei a Celine depois, o Maestro e todas as pessoas na confusão entre palco e platéia. Vi de longe o Paulo Mendes e saí correndo para abraçá-lo.

Puta que pariu! Fizemos, Paulo! Está feito. O espaço que ele criou, a geografia das feirinhas que subiam pelas paredes, a escadaria que, subterrânea, levava as interpretes para desfilarem no proscênio, sempre para a platéia.

Durante o ensaio geral de "Suor Angélica", colocamos, eu e minha filha Maria, um postal da praça do Patriarca debaixo do carpete verde central da platéia. Para guardarmos um segredo só nosso. E era o teatro que eu tinha ido quando era pequena com meu avô. Anos depois, durante outro trabalho, não encontramos mais o postal, a Maria ria, meu assistente insistentemente perguntava o que procurávamos por debaixo da passarela: era a praça do Patriarca que desapareceu e surgiu novamente através dos olhos astutos do Paulo Mendes da Rocha.

São Paulo. Trânsito que me possibilita horas de celular com a Wilma e a Célia, Aninha, Zarif, Camila, Sylvie, papo de praia jogado fora, lúdico. São Paulo que abriga o Mindlin, Haroldo de Campos, Gabi, Claudia, tia Maria Helena, tio Milton, Verinha, tia Cecília, Arnaldo Antunes, Antunes, Salma, Liginha, tantos amigos com M, com P, com T...

São Paulo que abriga milhões. Abriga e desabriga, que amplia as contradições. Amplia. Amplia.

BIA LESSA é diretora de teatro
 

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