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28/11/2003 - 04h14

Gosto local evoluiu do beiju com torresmo para a cozinha de padrão internacional

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JOSIMAR MELO
Colunista da Folha de S.Paulo
RICARDO MARANHÃO
Especial para a Folha de S.Paulo

Até a primeira metade do século 19, a pobre vila de São Paulo não tinha o que oferecer para o forasteiro comer.

No século 16, era um lugar de escassez, embora as propriedades rurais do seu entorno tivessem alguma auto-suficiência. Não havia como dar de comer ao ousado viajante que tivesse a coragem de galgar as escarpas da serra pela difícil estrada indígena, "donde no se pueden pasar ni cavalgaduras", queixava-se dom Augusto Céspedes em 1628.

Por isso a antiga Câmara Municipal, em 1599, fez convite para quem quisesse abrir casas de comestíveis. Um tal de Marco Lopez apresentou-se e abriu uma "casa de pasto" próxima à igreja do Colégio, onde os mascates que vinham vender tecidos e remédios, ou os sitiantes dos arredores, podiam apear e comer torresmo, beijus de tapioca, carne assada e feijão mulatinho com farinha.

Não se encontraram registros de estabelecimentos do gênero até o século 19. Mas, provavelmente, o que se comia nas casas que devem ter sucedido à de Lopez era esse trivial simples mencionado até mesmo depois de 1827, inauguração da Faculdade de Direito.

Os acadêmicos do largo São Francisco se entediavam, até os anos de 1860, com a falta do que fazer. Tinha de se contentar com uma ou duas tavernas de má catadura, ou com o Café da Maria Punga, onde o café moído a pilão acompanhava bolinhos de tapioca, broinhas de polvilho, bolos de fubá e outras quitandas.

A partir de 1850, surgem os restaurantes: o Popular, na rua da Imperatriz, o Balneário, na rua Municipal, o de Bragança, na rua da Quitanda, o de Gandolfo Nicola, na rua da Boa Vista, o Sereia Paulista, na rua de São Bento. Entre eles, alguns que ficaram famosos: o Stadt Bern, dos alemães Leuthold & Schaulz, que servia chope (até 1870, só encontrado ali e no Café Corde); e o restaurante francês da Viúva Rogé, na rua do Comércio, frequentado até pelo poeta Castro Alves e sua amada, a atriz Eugênia Câmara.

Na hora do lanche

Porém os mais famosos mesmo nesse período foram os restaurantes de hotéis. Em 1857, abria-se o Hotel de France et Restaurant, na rua do Comércio. A culinária do Hotel da Europa foi cantada pelo visconde de Taunay. Os fazendeiros gostavam muito do Hotel de França.

Mas, pelo hábito do pequeno lanche à tarde, no intervalo das aulas vespertinas, os estudantes corriam para doceiras como Nhá Umbelina, defronte à Academia.

Nos últimos anos do século 19, a capital paulista começa a mudar rapidamente de fisionomia, com um crescimento urbano induzido pela dinâmica econômica da cafeicultura. Ao mesmo tempo, os estudantes dos anos de 1860 e 1870 tornam-se a classe dirigente do país: a República guindou ao poder também os homens de negócios paulistas, junto com seus parentes bacharéis em direito.

Agora ricos e poderosos, eles exigiam mais qualidade dos seus pontos gastronômicos. Tinham o hábito de comer e beber em confeitarias como a Casa Fazoli, a do alemão Adolfo Nagel e a Cordes.

Enquanto começa essa disseminação dos restaurantes, trazendo aos paulistanos uma cozinha mais sofisticada e cosmopolita, as mudanças são muito mais lentas no âmbito familiar. Até o final do século 19, a comida trivial é ainda calcada na cozinha original da época dos bandeirantes: o arroz com feijão, a farinha e a carne de porco ou de boi e algum raro legume. As verduras continuavam escassas, o que só iria mudar com as hortas japonesas de Itaquera e Mogi das Cruzes, depois da Segunda Guerra (1939-1945).

As informações recolhidas dos viajantes confirmam esse quadro. Debret fala do hábito de comer lombo de porco, embora as bistecas fossem mais apreciadas. Agostini foge um pouco do tom ao mencionar as refeições de lambari com chuchu e canjica. A proximidade da zona rural permitia que, em domingos e dias de festa, houvesse carnes de caça de aves, como codornas e pombos.

Desde a Primeira Guerra (1914-1918), a indústria paulistana trouxe os progressos urbanos: bondes, iluminação pública, lojas e, naturalmente, bares e restaurantes. Os industriais, comerciantes, banqueiros e a classe média dos serviços e profissões liberais agora representavam uma nova demanda de alimentos e bebidas.

Os primeiros a atendê-la foram os italianos, que dominaram o mercado de restaurantes nas décadas de 20 e 30. Desde as cantinas como a Capuano, da rua Conselheiro Carrão (de 1907), mais antigo restaurante ainda em funcionamento na cidade, ou as do Brás, como a Castelões (de 1924), até hoje servindo suas massas generosas na rua Jairo Góis, passando pelos restaurantes em que o povo do comércio do centro almoçava a partir dos anos 30, como o Spadoni, o Telêmaco, o Palhaço (conhecido por seus polpetones) e o Carlino; a Brasserie Ferrari (com seus galetos), o Gigetto (desde 1938, hoje na Avanhandava); o Giani, com seu requintado frango assado com jabuticaba; até os mais sofisticados (a Brasserie Paulista, da família Fasano), o Franciscano, o Roperto (desde 1942, hoje na 13 de Maio).

Entretanto os franceses não ficaram para trás, como o Freddy, mais antigo gaulês ainda em funcionamento; o La Popotte, na Vila Normanda, hoje a galeria do Copan; o Le Logis, que começou em Campo Limpo; o La Paillotte, de 1953, ainda hoje na avenida Nazaré; o La Casserole, de 1954, hoje no Arouche; e o Marcel, do centro da cidade, hoje em outros endereços.

As migrações ocorridas desde o final do século 19 vão lentamente introduzindo novos sabores também na cozinha do cotidiano. O macarrão já aportara aqui desde antes (provavelmente trazido pela pequena migração italiana para o Rio no começo do século 19), mas ocupa espaço em São Paulo com as ondas migratórias entre 1860 e 1920. Antes feito artesanalmente em casa, sua popularização só foi possível, porém, com a produção industrial, inaugurada em 1896 quando o comendador Enrico Secchi fundou o Premiato Pastificio Italiano, capaz de produzir 2.000 quilos de massa de 40 tipos diferentes por dia.

Outros povos recém-chegados também vão introduzir sua colher na comida dos restaurantes e, sempre mais lentamente, nos pratos caseiros dos paulistanos. Assim o bife e o arroz dos colonizadores portugueses ganharão a companhia da esfiha libanesa, do suflê francês, do salsichão alemão. Mas nada com a intensidade da influência italiana, que leva para os lares o espaguete, a lasanha e o bife à milanesa.

São Paulo se transformou na "cidade que mais cresce no mundo" a partir do boom industrial da Segunda Guerra. A urbanização acelerada não parou mais de exigir restaurantes.

Os italianos continuaram a marcar presença, com o Jardim de Napoli (1949), o Cacciatore (1952), a Venite (1956) ou a Cantina Speranza (1957). Para os mais abastados, há desde 1953 as iguarias do Ca d'Oro. Os alemães se estabeleceram em torno de sua comunidade em Santo Amaro, com o restaurante da Dona Ana, o Rodolfo e, em 1948, o Windhuk.

Sabor cosmopolita

O caráter imigrantista e cosmopolita da cidade atraiu também bons restaurantes árabes e armênios (Brasserie Victoria; Almanara, de 1950, e Casa Garabed, 1951); espanhóis (La Coruña, de 1956, Don Curro, 1958); suíços (Caverna Bugre, 1950); gregos (Acrópoles); chineses (Sino-Brasileiro); e japoneses da Liberdade, que com o Tanji e a Casa Hinodê, de 1966, também conquistaram gente de fora da comunidade.

A partir dos anos 70, com a chegada dos fast-foods, de um lado, ou das sofisticações da nouvelle cuisine francesa, de outro, e com a multiplicação das churrascarias de rodízio e dos bares de sushi, São Paulo ganha ares de pólo gastronômico cosmopolita. E ao hambúrguer americanizado responde com a comida por quilo, fast-food mais adequado ao nosso regime alimentar.

Só ficou faltando a afirmação de uma base nacional, com bons restaurantes de cozinha regional brasileira. Mas, nos anos 90, surge uma nova geração de chefs de cozinha esclarecidos, oriundos da classe média, que têm se interessado pelo resgate da cozinha brasileira, dando continuidade a um movimento que curiosamente foi deflagrado por estrangeiros (os franceses Michel Thénard e Laurent Suaudeau e o belga Quentin de Saint-Maur) que, a partir da década de 80, fascinaram-se pelos ingredientes locais.

Ricardo Maranhão é historiador da gastronomia e professor na Universidade Anhembi Morumbi.
 

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