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11/01/2004 - 07h23

Caminhos da memória: Crimes da cidade em mutação

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CYNARA MENEZES
free-lance para a Folha

O advogado Paulo José da Costa Jr., 78, conseguiu sobreviver a vários homicídios --como criminalista, ganhou alguns casos, perdeu outros. E conta em seus livros a história dos que conquistaram a glória torta de uma vida fora-da-lei: crimes célebres em que atuou como defensor ou que apenas observou e que também fazem parte da história de São Paulo.

A cidade onde Costa Jr. cresceu era uma província bucólica na qual, nas noites de São João, famílias se reuniam em torno da grande fogueira montada em plena rua Haddock Lobo, atualmente uma das mais movimentadas da região da Paulista. "Soltávamos fogos, balões, assávamos batata-doce na brasa", conta o advogado, que é membro da Academia Paulista de Letras. "Era como uma cidade do interior."

Em meados da década de 50, ele ainda passeava a cavalo pelas ruas do Jardim Paulistano, vindo do Jóquei. Durante a infância, seu cavalo negro Pons dormia em uma cocheira instalada nos fundos da casa dos pais, numa travessa da Haddock Lobo, onde também se criavam galinhas. A prefeitura reclamou da granja urbana e Pons teve de ser vendido.

Pela calçada, de manhãzinha, vinha o vendedor de leite de cabra, ordenhado na hora para quem quisesse, quente e espumante no copo. Padeiros e peixeiros, precursores das "delivery" de hoje, entregavam seus produtos aos fregueses na porta.

Esquartejadora da Casa Verde

Ao mesmo tempo que as fogueiras juninas iam se apagando, a violência, antes uma faísca, se inflamava: hoje são mais de 4.000 homicídios por ano na capital, apesar de casos como o de Florinda Marques Alves continuarem chocantes. Fabricante de guarda-chuvas, Florinda foi parar nas manchetes dos jornais de julho de 1956 sob o epíteto de "A Esquartejadora da Casa Verde".

A morena de 31 anos e traços marcantes, para muitos até bem atraente, estava cozinhando quando o marido chegou dirigindo-lhe ofensas. Não teve dúvida: pegou um martelo na prateleira e atingiu a cabeça dele. Do chão, a vítima teria ameaçado: "Quando me levantar daqui, acabarei com tua raça". Com mais quatro marteladas, Florinda o calou para sempre.

Para se livrar do corpo, contou com a ajuda do amante. A dupla, porém, teve dificuldades em esquartejar a vítima e pediu a ajuda "profissional" da irmã de Florinda, que era enfermeira e explicou a necessidade de se fazer o corte pelas juntas. Alguns dias depois, um corpo, dividido em três malas (cabeça, tronco e pernas) era encontrado por um caminhoneiro no rio Tietê.

O mais incrível é que o advogado Costa Jr., encarregado de defender Florinda, acabou conseguindo absolvê-la em primeira instância por legítima defesa. Pegou apenas dois anos por ocultação de cadáver. "Provei que o marido a tinha ameaçado com uma navalha. O adultério também não podia ser utilizado como agravante, porque a vítima consentia e até fazia proveito financeiro da relação de Florinda com o amante", argumenta.

Com o êxito, Costa Jr. se tornaria advogado de várias criminosas. Duas décadas antes da liberação feminina e do divórcio, brigas entre casais podiam terminar em tragédia, com o marido repressor como vítima. "Só de mulher que matou o marido a machadadas defendi três", diz.

A situação de uma delas, Maria Rondon, era agravada pela suspeita da Promotoria de que havia dado os golpes de machado no marido enquanto dormia. Costa Jr. argumentou no tribunal que não havia, porém, marcas de sangue na cama, apenas no assoalho. Conseguiu reduzir a pena no primeiro júri.

O promotor recorreu, e o defensor perdeu o segundo julgamento porque Maria havia confessado, nesse ínterim, ter agido da seguinte forma: a cama tinha sido forrada com plástico para que seu neto, um bebê, não a molhasse enquanto dormia.

O marido recebeu as machadadas durante o sono e foi arrastado sobre o plástico --daí a ausência de manchas no colchão.

O advogado atuou também no caso de Neide Fagundes, prostituta que fazia ponto em um bar da praça Júlio Mesquita. Explorada por um investigador de polícia, era espancada toda vez que voltava para casa com pouco dinheiro. Um dia, quando estava fazendo café, teve a idéia de encharcar o amante em álcool e atear fogo.

Como se arrependeu em seguida e tentou apagar as chamas com um cobertor, pegou a pena mínima por homicídio culposo. Costa Jr. se tornaria, mais tarde, padrinho de casamento da "regenerada" Neide.

Em 1958, o criminalista recebeu de um preso ilustre o pedido para defendê-lo, embora não tivesse dinheiro para pagar: Gino Meneghetti (1888-1976), o ladrão que foi capaz de ludibriar a polícia repetidas vezes com atuações audaciosas durante as décadas de 1910 e 1920. "Nunca feriu ninguém. Era um ladrão romântico", afirma o advogado, que libertou Meneghetti da prisão em 1959.

Tornaram-se amigos. O ladrão explicou a Costa Jr. seus métodos: sempre agir sozinho e nunca passar mais de cinco minutos em cada residência. Para saber quem estava ausente de casa, costumava ir à praça da República e verificar os carros estacionados.

Numa ocasião, realizou o feito de roubar da mansão Matarazzo, na avenida Paulista, um colar com as cores da bandeira italiana (esmeraldas, rubis e diamantes). Preso Meneghetti, a jóia, vista nas fotos de sua captura, desapareceu.

O mistério ronda até hoje o "Crime da rua Cuba", no Jardim América. Na véspera do Natal de 1988, o casal Jorge Toufic Bouchabki, advogado, e sua mulher, Maria Cecília, foram encontrados mortos na cama com tiros na cabeça.

Quem teria sido o assassino?

As suspeitas recaíram sobre o filho do casal, Jorge Delmanto Bouchabki, então com 18 anos, que não foi a julgamento por falta de provas.

No livro "Crimes Famosos" (editora Millenium), o criminalista levanta sua hipótese: Maria Cecília teria sido morta pelo marido e este, por sua vez, pelo filho.

Jorginho Bouchabki decidiu processar Costa Jr. por ofendê-lo, mas, em outubro do ano passado, os juízes da 12ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo entenderam que não houve crime, arguindo o direito à ilação, ou à dedução.

Bouchabki já anunciou que irá recorrer da decisão.

Outro caso famoso em que não atuou, mas que é narrado pelo advogado no livro "Meu São Paulo? ...Nunca Mais!" (editora Arx), relançado agora, é o do Castelinho da av. São João, esquina com a rua Apa. Costa Jr. conta que, no final da década de 1930, morava na residência em forma de castelo a família Reis, também proprietária do cine Broadway, nas proximidades da av. Ipiranga.

O filho Álvaro, desportista, com perfil de playboy, tinha planos de transformar o cinema em um rinque de patinação no gelo, que seria o primeiro do Brasil. Como a mãe não concordou em dar o dinheiro para o caro empreendimento, matou-a e ao irmão a tiros, para suicidar-se em seguida. "Desde então o Castelinho tem fama de mal-assombrado."

Calma da infância

Memorialista da cidade, Costa Jr. mostra em "Meu São Paulo?..." o saudosismo da calma época de infância, embora, ironicamente, os crimes tenham se tornado seu ganha-pão na idade adulta. "Sequestro, furto de bicicleta, atentado ao pudor na calada da mata, nem pensar. São Paulo era aconchegante e pequenina e transmitia tranquilidade", escreve.

Para garantir a imagem idílica fresca na mente, instalou o escritório na casa ocupada pela família a partir de 1935, na alameda Gabriel Monteiro da Silva, no Jardim Paulistano, onde cavalgava. Na entrada, uma frase do poeta gaúcho Mario Quintana emoldurada entre fotos antigas da região traz a justificativa: "O homem se muda de todas as casas, menos daquela onde viveu na infância". Em vez do barulho de cascos, ouvem-se sons de buzinas lá fora.

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