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01/02/2004 - 08h37

Artigo: Arqueologia da tortura

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RONALDO VAINFAS
Especial para a Folha de S.Paulo

A tortura faz parte da história do Brasil desde o seu primeiro século. Antes de tudo, por causa da escravidão que, conferindo aos senhores a propriedade do corpo de seus cativos, facultava-lhes o direito de castigá-los.

Se é verdade que a legislação régia impunha limites, restringindo o número de açoites e outros abusos, não faltam exemplos de tremendos suplícios aplicados aos cativos do Brasil antigo.

Documentos do século 16 registram atrocidades perpetradas contra índios escravizados, a exemplo de um gentio assado numa forja por um senhor destemperado ou de uma índia lançada viva --e grávida-- na fornalha de um engenho, na Bahia, simplesmente porque fizera intrigas de seu amo com a sinhá da casa-grande.

No século 18, o campeão das torturas contra escravos negros foi, sem dúvida, Garcia d'Ávila Pereira de Aragão, senhor da Casa da Torre.

Mutilava escravos por qualquer motivo, em especial na Sexta-Feira Santa, queimava-os, feria-os de tantas maneiras que foi denunciado à Inquisição por escrito, com o arrolamento de várias testemunhas. Sua conduta chegou mesmo a chocar uma sociedade na qual a violência era banalizada e até legalizada.

No mais das vezes, o suplício de escravos funcionava como punição, espécie de castigo exemplar que se aplicava a um escravo transgressor, por exemplo um fugitivo, à vista dos demais.

Violência física combinada com pedagogia do medo. Mas houve ocasiões em que escravos foram torturados como simples suspeitos de crimes imaginários.

Foi o que ocorreu em Ribeirão do Carmo, Minas Gerais, pelos idos de 1745, quando a negra Luzia da Silva Soares, acusada de preparar malefícios contra a família senhorial, foi barbaramente torturada, queimada com tenazes de ferro em brasa, pendurada numa escada e queimada com fogo nos pés.

É claro que Luzia confessou todos os malefícios que lhe imputavam, mas ainda assim seus amos a encaminharam à Inquisição sob a acusação de feitiçaria. O estado da mulher era tão deplorável que a própria Inquisição de Lisboa absolveu-a e lhe deu alforria, julgando excessiva a tortura que lhe haviam infligido.

A escravidão estimulava o suplício, mas não o inventou. O exemplo vinha de longe, de Portugal, da própria Europa do Antigo Regime, que não reconhecia, como princípio, a integridade do corpo humano, sobretudo no caso de suspeitos e condenados.

Os condenados por grandes crimes, como os delitos de lesa-majestade, eram executados com requintes de crueldade, atenazados, desmembrados, tudo em praça pública, num autêntico espetáculo popular. A Inquisição, como se sabe, queimava os hereges mais pertinazes, embora em geral os garroteasse antes, fiel à "misericórdia" constante no estandarte do Santo Ofício.

Mas uma coisa é o suplício do condenado à pena capital, sempre uma punição espetacular, outra a tortura, nas masmorras, como técnica de interrogatório. No Antigo Regime luso-brasileiro, isto era perfeitamente legal, como na Europa dos reis absolutistas. O livro V das Ordenações Filipinas (1603) considerava lícito o emprego do tormento como meio de extrair confissões de réus teimosos em negar acusações notórias.

A Inquisição também utilizou o tormento à farta, embora se limitasse ao uso do potro e da polé, instrumentos que apertavam as articulações, no primeiro caso, ou deslocavam membros, no segundo, sem derramar sangue. Como tribunal religioso, a Inquisição era proibida de fazê-lo.

Juristas ilustrados do século 18 puseram em xeque a licitude moral e a eficácia da tortura como técnica de interrogatório. Apontaram a desumanidade dos tormentos e sua falibilidade.

Houve quem dissesse que o tormento era a melhor maneira de absolver um culpado robusto e condenar um inocente fraco, e por isso devia ser abolido. Pouco a pouco, os códigos criminais foram deixando de lado, seja o suplício exemplar nas penas capitais, seja a tortura para obter confissões de culpa. O Código Criminal do Império do Brasil seguiu este exemplo, em 1830.

Mas a tortura foi capaz de atropelar, no Brasil e no Ocidente, os princípios iluministas mais elevados. Pôde renascer e frutificar nos momentos sombrios de autoritarismo e persiste, informalmente, no seio da sociedade, a despeito de sua iniqüidade. São os fantasmas do Antigo Regime que se fazem presentes ainda hoje, castigando suspeitos de antemão, e assombrando os dias e as noites de todos.

Ronaldo Vainfas é professor de história moderna na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de "Os Protagonistas Anônimos da História" (ed. Campus), entre outros livros
 

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