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09/03/2007
Carta da semana
A Experiência de Tihar
"Nunca o sistema penitenciário
brasileiro esteve em tamanha evidência. Desde que se
deu conta do crescimento das facções dentro
dos muros dos presídios e do fato de que elas estão
matando organizadamente fora deles não se via tamanho
empenho no debate acerca das idéias e sugestões
para a solução do impasse. No Brasil se transformou
a precária realidade do sistema, antes ocultada, em
discussão nacional.
Historicamente, o direito de punir
esteve ligado à vingança do soberano. As Ordenações
do Reino, herdadas da dominação portuguesa na
Colônia, permitiam aos herdeiros do ofendido retribuir
em maior proporção ao condenado o mal por ele
causado. Deu-se, paulatinamente, a transformação
do processo punitivo de castigo e vingança em técnica
penitenciária. Privilegiou-se o adestramento do condenado
e não a sua punição pura e simples.
Aqui, não foi possível
cuidar da separação dos criminosos levando em
conta a gravidade de seus delitos. Viabilizou-se, por inércia
do Estado, o surgimento e fortalecimento de facções
criminosas organizadas. Instalou-se o caos.
Agora, para administrar as corrompidas
penitenciárias brasileiras há necessidade de
urgência e eficiência, características
que, há muito, haviam sido abandonadas na administração
pública do sistema. E os problemas são mais
graves se considerarmos que os recursos do Estado, hoje escassos,
fazem falta também em outros setores igualmente prioritários,
entre eles a saúde e a educação da população
carente. De onde, então, aguardar-se a urgente eficiência?
Em Tihar, nos arredores de Nova Deli
na Índia, em um dos maiores estabelecimentos prisionais
do mundo contemporâneo, deu-se experiência singular.
Ali, em presídio de segurança máxima,
conhecido como um inferno sem solução, onde
estão internados mais de treze mil detentos, a criatividade
pura e simples de uma diretora, agindo sem recursos e investimentos
públicos do governo indiano, foi a campo com a utilização
de técnica milenar: a criação de clima
favorável ao estabelecimento de estado contemplativo,
submetendo os detentos a períodos de meditação
profunda, com a finalidade terapêutica de livrá-los
de seus sofrimentos pessoais, proporcionando-lhes melhor qualidade
de vida.
A técnica, denominada Vipassana,
foi aplicada aos presos indianos acabou por levar ao quase
aniquilamento da reincidência, corrupção
e uso de drogas nos presídios onde está funcionando.
Em razão do sucesso imediato, foi estendida aos funcionários
dos estabelecimentos e proporcionou a proliferação
de cursos periódicos em uma área especialmente
criada para reflexão.
A transformação modelar de Tihar nos últimos
treze anos da experiência, acabou fazendo-a referência
para outros presídios indianos. Mais do que isso, atraiu
a atenção de estudiosos e pesquisadores do mundo
todo sobre o fenômeno do controle das angústias
das populações carcerárias. Mereceu a
atenção da psicanálise e da psiquiatria,
já que reflexão não é técnica
convencional de pacificação de presidiários.
Na verdade, a experiência abriu caminho inédito
com a adoção de solução prática
e econômica para contenção dos problemas
carcerários, transformando a vida na prisão
em rotina mais suportável e, por consequência,
menos violenta.
Pode parecer estranho para os padrões
ocidentais. Não se nega. A realidade brasileira é
bem diversa. Também são diversos os problemas
aqui enfrentados pelas autoridades no trato com a delicada
questão. Porém, se considerarmos que no Brasil
a falta de recursos públicos e a urgência para
o encaminhamento da crise, são na essência, os
mesmos problemas que em Tihar demandaram pronta solução,
será justo reconhecer que a experiência do presídio
indiano é uma demonstração forte de que
o pragmatismo também é fator determinante no
encaminhamento de soluções nos presídios.
O que se deu naquela paragem distante foi, na verdade, a modificação
radical em um ambiente antes violento e corrupto. Teve o mérito
marcante de se basear na criatividade de autoridades públicas
no trato com questões polêmicas e, inclusive,
no enfrentamento da realidade que permitiu, com o auxílio
de métodos não convencionais de cumprimento
de pena, o abrandamento da crise.
A experiência contemplativa de Tihar propiciou aos condenados
o resgate da dignidade e do sentido do cumprimento da pena.
Trabalhou a acumulação das tensões que
dominam os ambientes carcerários, trazendo demonstração
de que a vocação e a criatividade das autoridades
são fatores determinantes para tornar mais justa e
equilibrada a vida das populações carcerárias",
Roberto Porto e José
Reinaldo Guimarães Carneiro, Promotor de Justiça
- rporto@mp.sp.gov.br
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