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REFLEXÃO

O sistema educacional mostra a falência da própria família?

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FOLHA DE S. PAULO
06/10/2003

Uma universitária na cadeia resume cem anos de Brasil

Flávia Oliveira Medina, 24 anos, filha de uma faxineira, conseguiu bolsa para cursar uma faculdade de direito. Apostava na possibilidade de um diploma na parede para que tivesse um destino melhor do que o de sua mãe - até ser presa, na semana passada, em São Paulo, acusada de participar de um sequestro.

Mãe e filha frequentavam a mesma universidade. Tão próximas fisicamente, mas tão distantes socialmente: Flávia estudava nas salas que eram limpas pela mãe.
O caso da ex-futura advogada, presa sob acusação de sequestro, é uma síntese notável da torrente de números apresentados, na segunda-feira, pelo IBGE sobre a evolução social do Brasil no século 20 - uma torrente que, dias depois, se avolumou com mais dados sobre a qualidade de vida nos municípios.

A universit
ária serve de argumento para os otimistas. Não é pouca coisa, afinal, uma filha de faxineira chegar à faculdade. Há cem anos, ostentar um diploma de ensino superior era um privilégio de raríssimos homens - e de nenhuma mulher- das famílias mais abastadas.

Mas o caso também pode sustentar uma visão pessimista: o nível de marginalização metropolitana é tamanho que produz universitárias capazes de participar de uma quadrilha de sequestradores - mesmo cursando uma faculdade que, em tese, deveria ensinar o respeito às leis.

A pesquisa do IBGE informa que, no começo do século, quando a expectativa de vida do brasileiro girava em torno dos 33 anos - não tão diferente assim da idade de Flávia -, a taxa de analfabetismo era de 65% da população com mais de 15 anos.

É evidente que, se examinarmos a questão do ponto de vista do tempo, diremos, sem hesitar, que houve uma notável melhora, afinal, o analfabetismo é hoje de 13%.

É, de fato, extraordinária a velocidade das matrículas escolares no país -a tal ponto que Flávia é mais um entre tantos milhões de brasileiros de famílias pobres que pularam a barreira do ensino médio e chegaram à faculdade.

Se condenada, ela vai engrossar a estatística de presos que passaram pela faculdade; é o caso de 8%, em média, dos presos de São Paulo.

Proporcionalmente, encontra-se numa penitenciária de São Paulo ou do Rio muito mais gente com diploma do que na elite brasileira no começo do século passado. Entre os presos, quase 20% têm ensino médio completo ou incompleto. Aliás, a taxa de analfabetismo nos presídios é de 11%, inferior ao índice brasileiro atual.

Traduzindo, temos o seguinte: em termos de escolaridade, a elite brasileira das primeiras décadas do século passado era um bando de analfabetos e selvagens em comparação com os delinquentes hoje encarcerados.

Tal comparação estapafúrdia recomenda que se encarem com cautela os números dos avanços de nossos indicadores sociais. As demandas que existem hoje criaram novas categorias de "analfabetos". É gente que estuda, até chega à faculdade, mas cujo conhecimento não serve para lidar com os códigos contemporâneos.

Um exemplo das novas demandas: cada vaga de trainee nas boas empresas é disputada por 700 candidatos, com exigências que vão desde o conhecimento de inglês, de informática e de língua portuguesa, entre outros, até capacidade de trabalhar em grupo, liderança, criatividade -e por aí vai. Isso faz o vestibular para as faculdades mais concorridas parecer uma brincadeira.

Nossa universitária presa ajuda a explicar mais um lote de estatísticas divulgadas na sexta-feira pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em parceria com o Ipea -a exemplo do IBGE, constatou-se que, no geral, a qualidade de vida nos municípios brasileiros melhorou.

Olhados mais detidamente, os números mostram que, nas regiões metropolitanas (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador), a pobreza aumentou e as cidades apresentaram queda no ranking de qualidade de vida devido ao desemprego crescente.

São justamente essas regiões metropolitanas, mais escolarizadas e tensas, que geram tipos como Flávia, capazes de sonhar com um diploma de bacharel e de participar de uma quadrilha.

Ela diz mais sobre o futuro do país, por revelar o barril de pólvora das metrópoles, do que todas as estatísticas sociais.

PS - Apesar da violência, a partir do próximo ano haverá pelo menos mais um motivo para visitar São Paulo -e graças a um formidável gesto de civilidade. A maior coleção individual de arte brasileira pertence hoje a Paulina Nemirovsky. O acervo será doado e fará parte da coleção permanente de um museu, a ser instalado no prédio, já reformado, do Dops, atualmente parte da Secretaria Estadual da Cultura.

Se Flávia condensa a marginalidade, a doação do acervo condensa a civilidade. A doação foi feita porque a família achou que aquele tesouro deveria ser visto por todos e para sempre, a começar das crianças. O próprio local para onde vão as obras é simbólico: o lugar onde, até há pouco tempo, se praticava a tortura vai mostrar algumas das imagens mais belas produzidas por brasileiros. Alguns deles, no passado, fichados no próprio Dops.

O Brasil que produz Flávias é o mesmo que transforma centros de tortura em museus. Resta saber quem vai imperar - se a beleza da arte ou a violência dos sequestros.

Coluna originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo, aos domingos.

 
 
 
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