REFLEXÃO


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folha de s.paulo
07/12/2009

Cidade de Deus com final de feliz?

Até o ano passado, o tráfico de drogas e a venda de armas eram feitos em frente às escolas municipais


Nos últimos oito meses, registrou-se apenas um homicídio na Cidade de Deus, no Rio, uma região que, por causa do filme, simbolizou mundialmente a imagem de nossa violência. O ano não acabou, mas arrisco dizer que, na minha lista pessoal, é uma das informações, no Brasil, mais interessantes de 2009.

Até onde se sabe, esse único assassinato nada teria a ver com o tráfico, mas com uma briga de família.

Além do simbólico, comprova-se a eficácia de uma receita contra barbárie, em uma localidade considerada, até pouco tempo atrás, desenganada. É como se rodassem de novo o filme, desta vez com um final um pouco mais feliz.

Demora até as pessoas acreditarem nesse tipo de estatística, tão acostumados estão com manipulações oficiais e com a violência. Há dez anos, o Jardim Ângela, em São Paulo, foi apontado pela ONU como a região mais violenta do mundo, mais do que qualquer bairro do Rio, inclusive a Cidade de Deus. Naquele período, o embate estatístico era com Medellín, na Colômbia.

Soa estranho que, segundo um indicador divulgado recentemente pelo Ministério da Justiça, feito com apoio de técnicos da Fundação Seade, a cidade de São Paulo seja a capital mais segura para um jovem morar. Mais do que Florianópolis e bem mais do que Curitiba.

A posição de São Paulo se deve, pelo menos em parte, à queda dos assassinatos no Jardim Ângela, onde há o cemitério com mais jovens enterrados por metro quadrado que se conhece.

Já vi esse filme antes. Cidade de Deus está seguindo o modelo de Jardim Ângela, que, por sua vez, seguia os modelos de Medellín, Bogotá e Nova York. Tive a sorte de, nos últimos 15 anos, assistir da primeira fila às mudanças nessas cidades.

No ano passado, a polícia decidiu montar um programa de policiamento preventivo, acoplado a ações repressivas e, assim, diminuiu a guerra entre as gangues locais.
O objetivo era uma ocupação permanente para garantir o controle do território. Naquele mês, foi deslanchada a operação no morro Dona Marta, onde, nos últimos oito meses, não houve nenhum homicídio.

O marco da queda da violência no Jardim Ângela foi a instalação de um policiamento comunitário, com diálogo com os moradores. Essa ação chegou lá em meio a uma articulação local envolvendo os mais diversos atores. Foi uma das primeiras ações do projeto, nascido entre estudantes universitários, que levou o nome de "Sou da Paz" -o projeto completou, na terça-feira passada, dez anos, e foi um dos responsáveis pela campanha do desarmamento.

Combina-se, assim, a ação policial com articulação comunitária. Até o ano passado, o tráfico de drogas e a venda de armas eram feitos na frente das escolas municipais da Cidade de Deus. Os professores tinham de pedir autorização para passar.
Muito diferente do que ocorre hoje. A prefeitura lançou ali, no início do ano, a figura do professor comunitário, treinando para montar redes entre a escola e a comunidade. Desenvolveu-se o modelo de bairro educativo -cinco escolas já estão em regime de tempo integral. Rapidamente, aumentou a matrícula.

Há no Rio um projeto (Escola do Amanhã) de implantação de período integral em 150 escolas das regiões mais violentas, onde se implanta, além do professor comunitário, a mãe comunitária. Uma dessas escolas foi visitada, na semana passada, pelo ex-prefeito Rudolph Giuliani, um dos responsáveis pela redução do crime em Nova York e, agora, convidado a consultor de segurança no Rio. É um lance com cheiro de marketing eleitoral -o grande arquiteto da redução da violência na cidade se chama Bill Bratton, cujas ações tiveram bons resultados em Nova York, Boston e Los Angeles, quando comandou seu policiamento.

Crianças e adolescentes envolveram-se em oficinas de arte para arrumar e pintar as praças. Antes abandonados, esses locais eram úteis para o crime.
Sabe-se que a pacificação depende de ações urbanísticas -luz, postos de saúde, áreas de lazer, transporte, coleta de lixo. É a fase final do controle territorial.

Os casos do Jardim Ângela e da Cidade de Deus revelam que, aos poucos, o Brasil vai dominando a tecnologia social de combate à violência.

PS - Como se vê no caso da Cidade de Deus, o problema da violência não é a droga. Mas apenas a falta de polícia para evitar o confronto entre grupos rivais e também a sensação de impunidade.


Coluna publicada no jornal Folha de S. Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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