REFLEXÃO


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urbanidade
08/08/2007

A escola da solidão

Com problemas de saúde, muitos alunos não enxergam o que está na lousa ou não ouvem o que o professor fala


Uma das lembranças mais fortes de Zyun Massuda é a solidão que sentia ao entrar na escola pública. Por mais que se esforçasse e prestasse atenção ao que diziam os professores, as aulas eram incompreensíveis. Isso pelo simples motivo de que ele, quando criança, só sabia falar japonês. "Era desesperador." Sua solidão na infância era reforçada por ter perdido o pai aos cinco anos de idade e viver com uma avó sempre doente.

Sua intimidade com a escola veio com os novos amigos e o domínio da língua, mas, especialmente, com as aulas de ciências. Um dos professores que mais o impressionava era alto, magro e negro -ele foi um dos que mais o influenciaram em seu gosto pela biologia e em seu futuro profissional. Saiu dali para um dos cursos superiores mais disputados do país. "As dores familiares e o prazer de estudar ciências certamente me levaram para a medicina."

Com o seu olhar de clínico-geral, Zyun reencontrou, neste ano, os traumas da escola em que estudou (Alves Cruz), onde, por outros motivos, os estudantes também têm dificuldades de entender o que os professores dizem. Agora, a situação não tem relação com a solidão da língua. "Descobri uma tragédia." Nesse instante, começa a nascer uma experiência.

Zyun arregimentou um grupo de médicos para fazer uma série de exames nos alunos da Alves Cruz.

Ele constatou que boa parte daqueles jovens, com tantos problemas de saúde, dificilmente conseguiria aprender. Parte expressiva dos alunos nunca tinha feito um exame médico. Muitos deles simplesmente não enxergam o que está na lousa, não ouvem o que o professor fala e não se concentram por causa da baixa taxa de glicemia no sangue. Ironicamente, a escola está na vizinhança da Faculdade de Medicina da USP.

Depois dessa constatação, Zyun novamente reuniu, no fim de julho, um grupo de médicos para sair percorrendo algumas escolas públicas nas proximidades da faculdade, como se criasse em seu entorno um cinturão de saúde escolar. Feito o diagnóstico, o estudante seria encaminhado para o sistema público de saúde. "Estaríamos, assim, montando um modelo de bairro saudável, integrando a educação aos equipamentos médicos." Logo de cara, o grupo encontrou um desses absurdos burocráticos: os postos de saúde não podiam atender os alunos que só estudam no bairro, só os moradores. Acontece que a maioria daqueles alunos vem da periferia, muitas vezes acompanhando suas mães. Conseguiu-se, então, sensibilizar as autoridades para que os postos mudassem de atitude.

Os reencontros de Zyun foram além das crianças solitárias que, como ele, tinham alguma dificuldade de entender o que se dizia em sala de aula.

Como mais um exemplo da crise da educação pública, a escola Alves Cruz, que tantos estudantes colocou na USP, estava ameaçada de fechar.

Um movimento de ex-professores e ex-alunos, entre os quais Zyun, envolveu-se para salvá-la. O coordenador desse grupo é um professor aposentado. Chamado Ary Rezende, é um negro alto e magro que, entre seus alunos, tinha um menino de olhos puxados que, embora falasse português com certa dificuldade, acabou virando médico.


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Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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