REFLEXÃO


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folha de s.paulo
09/07/2007

O apagão do trânsito

Quanto mais larga a calçada, maior a democracia. Esse princípio, tão óbvio, está ameaçado pelo trânsito

A Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) informa que o Brasil vai bater, neste ano, o recorde nacional de venda de veículos. Em meio a esse aquecimento, esperam-se para este mês anúncios de grandes investimentos destinados a dar conta das encomendas; só a General Motors deve fazer um aporte de mais R$ 1 bilhão. Essa boa notícia para o emprego significa, ao mesmo tempo, um risco de colapso urbano e danos à qualidade de vida.

Especialistas prevêem um apagão do trânsito, com crescente entrada de automóveis nas ruas, especialmente nas regiões metropolitanas.

A economia se expande, os juros caem e o crediário está mais acessível. Sem contar a possibilidade, temida pelos engenheiros de trânsito, de que cheguem ao país carros baratos vindos da Índia e da China. Não há nem tempo para abrir ou alargar tantas ruas para esses veículos.

Para evitar esse apagão em cidades como São Paulo, os técnicos são unânimes: mais cedo ou mais tarde, queiramos ou não, será implementado o pedágio urbano, cujo objetivo é reduzir o trânsito e drenar recursos aos transportes públicos. Trata-se de uma questão de civilidade.

Em Londres, a prefeitura enfrentou forte resistência ao implantar o pedágio urbano. Diante da melhoria da qualidade de vida, resolveu-se, neste ano, aumentar a limitação da circulação de automóveis.

O sucesso da experiência londrina teve repercussão em Estocolomo (Suécia), onde os moradores decidiram, em plebiscito, criar o pedágio.

A Prefeitura de Nova York, guiada pela idéia de ser a vanguarda da preservação do ambiente, informou que quer cobrar a circulação dos automóveis em dias úteis. Paris vem lançando uma guerra para garantir espaços aos pedestres e ciclistas, brigando com os motoristas. Nenhum dos prefeitos dessas cidades se tornou impopular por causa dessa batalha por espaço. Muito pelo contrário: ganharam pontos com o eleitorado. Uma cidade como São Paulo estaria preparada para esse tipo de medida?

Ninguém quer pagar mais taxas num país onde já se pagam tantos impostos. Daí que o prefeito que tiver a coragem política de implantar o pedágio talvez, no futuro, seja lembrado como um estadista, mas, no presente, terá de enfrentar pressão. Existe, porém, em São Paulo, uma saturação dos congestionamentos que, a rigor, devido ao custo a mais do combustível e da perda de mobilidade, são um pedágio disfarçado.
Assim como surpreenderam ao se adaptarem rapidamente às duras normas da lei contra a poluição visual, os paulistanos talvez aceitem uma limitação ao trânsito de veículos desde que convencidos de sua eficiência. Isso quer dizer melhoria do transporte público.

Na semana passada, vimos uma pista dessa saturação. Por causa das férias, a prefeitura decidiu suspender o rodízio, o que, em tese, seria uma boa notícia para os donos de automóveis. Quem se sentia aliviado, neste período, voltou a sentir-se no inferno. Resultado: muita gente reclamou. Dados oficiais mostraram pioras no nível de poluição, o que, no inverno, se traduz em mais crianças com problemas respiratórios.

A Câmara Municipal de São Paulo aprovou, por unanimidade, uma lei que proíbe o estacionamento de automóveis nas ruas sob o argumento de que, com isso, o trânsito fluiria. O prefeito Gilberto Kassab disse que iria vetar a lei por considerar inviável a sua aplicação neste momento, mas comprometeu-se a ir, pouco a pouco, criando zonas em que será proibido estacionar.

Reunindo a elite econômica, social e cultural paulistana, o movimento Nossa São Paulo prepara para o próximo dia 22 de setembro uma mobilização, o Dia sem Carro.
A idéia é conscientizar a população do custo do transporte individual e, a partir daí, lançar campanhas pelo transporte público e pela preservação ecológica.

A cidade educada é aquela em que os pedestres são valorizados, podendo usufruir de largas calçadas, praças e parques. Quanto mais larga a calçada, maior a democracia. Esse princípio, tão óbvio, está ameaçado pelo apagão do trânsito.
Portanto, a euforia da Anfavea, com seus recordes de venda, talvez se transforme, cada vez mais, num atraso se as cidades tiverem força para serem mais inteligentes.

PS - Coloquei no site as experiências de trânsito em Paris, Estocolmo e Nova York. Por ter vivido em Nova York, sei o supremo prazer que é viver sem precisar de carro e ter à disposição as enormes calçadas.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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