REFLEXÃO


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folha de s.paulo
10/08/2009

Complexo de pai abandonado

Cultivamos uma vaga sensação de que sempre estamos em dívida com os nossos filhos


Psiquiatras relatam há tempos sobre o aumento do número de crianças e adolescentes das classes média e alta com sintomas de depressão -cansaço, irritabilidade, insônia, abatimento, tristeza, vontade de não sair do quarto. "As queixas são generalizadas", afirma Magda Carneiro Sampaio, professora de pediatria na USP e presidente do Instituto da Criança, ligado ao Hospital das Clínicas. Fala-se até que estariam aumentando as tentativas de suicídios. Por isso, fiquei intrigado com um estudo da Universidade de Michigan (EUA). Abatimento e tristeza não seriam necessariamente um problema, mas um sinal de saúde mental.

Se não forem, porém, percebidos como alerta e tomadas providências, corre-se o risco de uma depressão grave, com efeitos devastadores -e, então, agrava-se o risco de abusos de álcool e drogas. Segundo o estudo, o abatimento, confundido com depressão, seria uma determinação do cérebro para que os indivíduos parem, ganhem energia e se adaptem à realidade, que, em alguns momentos, exige além dos limites. A depressão leve sugeriria que se tire um tempo de tantas tarefas.

O autor da pesquisa, Randolph Ness, psicólogo especialista em biologia evolucionista, sustenta que o ser humano, no seu esforço de sobrevivência, é dotado da capacidade de perceber que determinadas tarefas são inviáveis. A depressão leve seria a hora de parar, repor as energias e se adaptar a desafios viáveis.

Tradução: excesso de persistência em determinadas metas, desconsiderando o cansaço, geraria desequilíbrios. Isso explicaria, pelo menos em parte, por que sociedades muito exigentes no desempenho na escola e no trabalho -EUA e Japão, por exemplo- apresentariam maior taxa de depressão. No Japão, é conhecida a alta incidência de suicídios entre estudantes.

Expus essa visão aos psiquiatras infantis Pilar Lecusan Gutierrez e Wagner Rana, que concordam com o diagnóstico de que cresce o número de crianças e jovens chegando aos consultórios com distúrbios psicológicos, muitos deles vítimas do excesso de expectativa da família e da sociedade. Mas atribuem parte da culpa aos pais.

Pilar afirma que a busca exagerada pelo desempenho faz com que os pais montem uma agenda de executivo para as crianças. Desde pequenas, começam a ser educadas para entrar nas melhores faculdades. Para piorar, segundo ela, há uma tentação de medicalizar as crianças em nome do desempenho na escola.
Muitas vezes, se vê a tristeza como uma anormalidade porque se valoriza a pressa e o fazer. "Natural que, nesse ambiente, muitas crianças e jovens fiquem desorientados e acabem num consultório", afirma Pilar.

Wagner Rana acredita que os pais que protegem demais os filhos acabam emitindo sinais contraditórios. O excesso de proteção, na visão do psiquiatra, dificulta o desenvolvimento da autonomia e, portanto, da habilidade de lidar com frustrações e desafios.

O fato é que os pais estão desorientados, como se estivessem abandonados.

Erramos por proteger em excesso. Mas nos sentimos culpados se não o fizermos, como se estivéssemos abandonando os filhos. Temos a sensação de que, nos nossos tempos, não havia tantos perigos: as ruas eram menos violentas, a família quase sempre, ao menos em um dia, estava reunida. Não se falava em sequestro relâmpago.

Não queremos ser repressivos como nossos pais e corremos o risco de virar adolescentes adultos. Sabemos que a liberalidade pode significar falta de limite. Não entendemos direito como os jovens usam os meios de comunicação porque crescemos em ambientes presenciais, e não virtuais. Ficamos desorientados diante de fenômenos como o "sexting", a moda das jovens enviarem, por celular, suas fotos nuas ou seminuas.

Antigamente, para saber quem eram as más companhias -e os pais sempre imaginavam que conheciam essa figura-, bastava olhar quem frequentava a casa. Hoje, provavelmente elas estão em alguma rede da internet. Ou assim se imagina.

Antes, quando as crianças não aprendiam, eram acusadas de preguiçosas ou displicentes; agora, a culpa, em boa parte, é da escola e dos pais. Quando se perguntava o "o que-você-vai-ser-quando-crescer?", tinha-se a presunção de que, no futuro, haveria emprego para quem estudasse.

Também se conheciam todas as profissões que, no futuro, estariam lá; as atividades profissionais não surgiam nem desapareciam com tanta rapidez.

Olhando para trás, tenho a sensação de que os pais não tinham dúvidas de como ser um bom pai. Bastava, em essência, alimentar, colocar na escola e garantir as férias; a mulher ficava a cargo do afeto explícito.

O Dia dos Pais era a chance de mostrar uma espécie de dívida de gratidão. No complexo de pai abandonado, cultivamos uma sensação de que sempre estamos em dívida com os filhos.

PS - O que não mudou é que, após ficarmos mais velhos, descobrimos que nossas maiores alegrias e fontes de realização estão ligadas aos filhos.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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