REFLEXÃO


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folha s.paulo
11/02/2008

Teste de múltipla falta de escolha

Na prática, o brasileiro está impedido de ler e entender uma notícia com um mínimo
de complexidade



Sem nehum aviso prévio, submeti a duas meninas de 12 anos, estudantes de uma escola privada paulistana (Oswald de Andrade), um teste de leitura que foi aplicado aos alunos da rede de ensino municipal da cidade de São Paulo, cujo resultado acaba de ser divulgado. Elas não estão entre as primeiras da classe nem estão abaixo da média, entretanto atingiram a pontuação de 325, ou seja, acertaram todas as questões -a escala vai de 0 a 325, correspondendo a diferentes habilidades. Acertaram sem demonstrar dificuldade.

A força desse fato só aparece na comparação: só 2,9% dos alunos da oitava série da rede pública conseguiram chegar ao nível mais alto. O detalhe é que as duas estudantes da escola privada vêm da sexta série. Se a comparação fosse com a mesma série, elas estariam quase sozinhas no topo da avaliação. Para não dizer sozinhas, estariam entre 0,3% dos que fizeram a prova. Daí se vê como prospera a desigualdade social. Espantado? Espere para ver.

Para chegar ao nível 300, seria preciso ler um artigo de nove linhas no qual se informa que, ao contrário da maioria dos rios que correm para o mar, o Tietê vai para o interior. Logo em seguida, apresentou-se uma poesia de Mário Andrade, onde se lê: rio que entras pela terra/ e que me afastas do mar.

Diante de um teste de múltipla escolha, cerca de 90% dos alunos da oitava série não souberam fazer uma relação entre a imagem poética e a explícita informação sobre a direção do Tietê, ou seja, não indicaram a opção de que o rio segue em direção ao interior, já explícita, com todas as letras, no artigo.

Atingiu a pontuação máxima (325) quem soube dizer, também em questão de múltipla escolha, que uma crônica de Fernando Sabino faz um relato no tempo presente para falar do passado. Menos de 97% dos estudantes chegaram lá.

Vamos descer um pouco na pontuação. No nível 275, pediu-se que o aluno identificasse uma frase em que aparecia o nome de um país com letra maiúscula. A palavra China aparece logo na primeira linha de um artigo sobre um golfinho. Resultado: 70% dos alunos da oitava série erraram; 90% da sexta série não acertaram. Prepare-se, então, para mais uma surpresa.

Com esse resultado, tomando por base o último teste nacional ( Prova Brasil), os alunos da oitava série da rede municipal paulistana, dos quais 70% não acertaram a frase com a palavra China, seriam vice-campeões em leitura se comparados a seus colegas das demais capitais. Estariam, na verdade, praticamente empatados em primeiro lugar.
A tradução, em essência, é que, na prática, o brasileiro está impedido de ler e entender uma notícia com um mínimo de complexidade. Não por outro motivo, as eleições se resumem, basicamente, a um jogo de imagens e frases de efeito.

Para não dizer que tudo é má notícia, a Prova São Paulo traz a inovação, que deveria ser copiada em todo o país, de que pela primeira vez se pode saber o desempenho não só de cada escola mas também de cada aluno -o problema é saber quantos podem ler e, acima de tudo, entender os seus resultados.

PS - Assim como houve um esforço, no passado, de explicar o "economês" dos economistas, vamos ter de traduzir o "pedagogês" dos pedagogos. Não há nenhuma razão para que não se divulgue também uma versão simplificada em uma escala de 1 a 10 ou coisa parecida. Assim os pais saberiam com clareza se seu filho está aprendendo, e a pressão popular seria maior. As avaliações trazem trechos só acessíveis a especialistas, e olhe lá.

Veja as habilidades necessárias para a pontuação 325, segundo o manual que acompanha a Prova São Paulo.

O aluno deve conseguir o seguinte para chegar a esse nível:
1) Estabelecer relações lógico-discursivas, em texto literário narrativo (crônica), identificando o efeito expressivo produzido pelo narrador no discurso enunciado, com a mudança de categoria de tempo (debreagem temporal) do fato narrado projetado no passado (não agora) para o fato narrado projetado no presente (agora);

2) Inferir item de informação subentendida, em texto expositivo informativo, com base em dada proposição hipotética, avaliando sua aplicação prescritiva em situação pública.


Links relacionados:
Bom exemplo contra a mediocridade

Leia o desabafo da professora da UFMG sobre o ‘pedagogês’ e as avaliações

Coluna originalmente publicada na Folha Online, editoria Pensata.

   
   
 
 

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