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REFLEXÃO


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urbanidade
13/12/2006
A vida por uma poesia

Além de se tornarem mais curtas que as dos tempos sem doença, as poesias de Leide passaram a refletir a solidão

Para a advogada Leide Consuelo Moreira, a poesia é, literalmente, uma questão de vida ou morte. "Quando estou escrevendo poesias, sinto que estou viva" - ela ditou essa frase por um código de piscadas de olhos, os únicos movimentos que subsistiram em seu corpo, paralisado dos pés até a cabeça.

Especializada em marketing de projetos culturais, Leide tinha como um de seus prazeres fazer longas caminhadas pela cidade de São Paulo, de preferência passando pelo parque Ibirapuera, próximo à sua casa. Escrevia poesias sem maiores pretensões. "Pura brincadeira", conta. Escrevia coisas desse tipo: "Se viver é uma arte/ e da vida fazemos parte/ vamos viver diferente/ colorindo a vida da gente".

No ano de 2004, apareceram os primeiros sinais de que algo estava errado. Seus passeios a pé tornaram-se cansativos e, aos poucos, o corpo perdia movimentos como se ela estivesse vivendo em câmara lenta. Soube então que sofria de esclerose lateral amiotrófica -uma doença degenerativa incurável que paralisa o corpo, exceto a função ocular.

Neste momento, a poesia deixou de ser uma brincadeira e virou uma forma de se manter conectado à vida.

Com a ajuda de parentes, Leide desenvolveu a habilidade de piscar para partes de uma tabela com letras, números e uma série de palavras, formando as frases -elaborar uma frase pode demorar muitas horas. Além de se tornarem mais curtas, quase telegráficas, do que as dos tempos sem doença, as poesias de Leide mudaram o tom e passaram a refletir a solidão.

"Minha vida se esvaindo./ Não sei se vou chorando ou sorrindo./ Sorrindo pondo fim a uma agonia que não agüento mais./ Chorando por deixar para trás pessoas que amo demais."

No entanto, ainda existem momentos de encantamento. Um deles provocado por um beija-flor que freqüentemente pousa no parapeito de sua janela. "Vem de manhã pousar na minha janela/ vem compartilhar a tua alegria/ me mostrar que a vida pode ser bela."

Quando trabalhava, Leide viabilizava projetos culturais de seus clientes - e, agora, quer viabilizar o seu projeto cultural. Publicar um livro com suas poesias, intitulado "Letras da Minha Emoção".

Seus parentes fizeram um livro caseiro e o distribuem de mão em mão até que, quem sabe, algum editor se sensibilize - se o projeto não sair do papel, ela sabe que será mais uma de suas adversidades com as quais terá de lidar.

Uma de suas poesias, chamada Trilhas da Vida, diz o seguinte: "Páginas viradas/ determinam/ o tudo e o nada./"

PS - Enquanto o livro não vem, coloquei algumas poesias de Leide abaixo:


Amar vale a pena
Amar faz bem
Amar é importante
faz sorrir a todo instante
E faz sofrer também


Dilema
Minha vida se esvaindo
Não sei se vou chorando ou sorrindo.
Sorrindo pondo fim a uma agonia que não agüento mais.
Chorando por deixar para trás pessoas que amo demais.


Trilhos da vida
Páginas viradas
determinam
o tudo e o nada.


Cotidiano
Num quarto de apartamento,
Sitiada por fora e por dentro,
Meu mundo é um vai e vem,
Das coisas que o quarto contém.

Além dos livros, música e televisão
que procuram distrair minha solidão
Há a paisagem da janela
Por sinal, nada bela

E assim a vida vai me levando
Para onde ou até quando
E num quarto de apartamento
Espero chegar meu momento


Primavera
Primavera floresce a hera do meu jardim
Primavera floresce a solidão em mim.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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