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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
17/04/2005
O Brasil está escrito em Grafite

Ao xingar o atacante Grafite e acabar na delegacia, o jogador Leandro Desábato entrou na história do racismo no Brasil.

Raras vezes um ato de discriminação foi comentado com tamanha intensidade no país, envolvendo pessoas de todas as classes sociais e faixas etárias. O fato teve, por exemplo, centenas de vezes mais impacto do que o pedido de desculpas pela escravidão, em meio a lágrimas, feito pelo presidente Lula em sua viagem pela África.

Boa parte da explicação do impacto da prisão é óbvia: a mistura da paixão pelo futebol com a tradicional rivalidade com os argentinos. Daí resultou uma operação policial transformada em espetáculo de mídia.

Há, porém, algo mais -e não é tão óbvio.
O caso Grafite também reflete um movimento de proteção da cidadania, fortalecida na década de 90, numa reação à selvageria brasileira. É algo que pode ser exibido em números e revela uma nova dimensão do jogo de poder.

Pesquisa realizada pela Ipsos e divulgada pela Folha na semana passada detecta que 9% dos brasileiros com idade superior a 13 anos realizam algum tipo de serviço voluntário. Traduzindo os 9%: são 3,1 milhões de pessoas realizando ações públicas. Para comparar: equivalem a cerca de seis vezes a quantidade de funcionários do governo federal.

Um dado especialmente relevante dessa pesquisa, baseada numa amostragem de 50.520 pessoas entrevistadas nas principais cidades: cerca de 20% dos profissionais com ensino superior são voluntários.

Isso significa que parte da elite intelectual -talvez até como reação ao descrédito nos partidos- não quer viver apenas orientada pela satisfação de necessidades individuais e busca uma dimensão pública, sem esperar pelo governo.

Esses dados se complementam com um levantamento do IBGE sobre o tamanho do que se convencionou chamar de terceiro setor, ou seja, o universo das organização não-lucrativas, que abrange de sindicatos a creches comunitárias.

O que chama a atenção é, em especial, a velocidade: de 1996 a 2002, o número de entidades saltou de 107 mil para 276 mil. Juntas, empregam 1,5 milhão de trabalhadores e movimentam cerca de R$ 18 bilhões por ano. Note-se que o IBGE apenas captou entidades registradas legalmente; as informais, que são muitas, ficaram de fora da pesquisa.

Por consciência cívica ou simplesmente por marketing, empresas dedicam-se à responsabilidade social. Nos últimos anos, esse tipo de atividade tornou-se parte da imagem empresarial. Isso significa uma peça importante na formação de opinião e de influência em políticas públicas.

Devido à demanda empresarial, surgiram cursos para formação de gestores de terceiro setor em instituições como a Fundação Getúlio Vargas, a USP e o Senac, entre muitas outras pelo país, as quais firmaram acordos com algumas das melhores universidades do mundo, como Harvard. Responsabilidade social virou, enfim, assunto obrigatório nos cursos de administração -até porque as empresas oferecem salários competitivos para esse gestor social.

Foi também na década de 90 que os educadores se deixaram seduzir pela aplicação, na sala de aula, dos chamados temas transversais -assuntos que permitem abordagem simultânea em diferentes matérias. Todas as escolas importantes usam a temática de cidadania como eixo transversal e até incentivam ações voluntárias, mesmo porque é sabido que alunos voluntários desenvolvem a habilidade empreendedora e estão mais preparados para enfrentar o mercado de trabalho.
Foi nesse período que a comunidade começou a entrar nas escolas públicas, oferecendo atividades complementares. Nos últimos anos, cresceu o número de escolas abertas nos fins de semana. Só na rede estadual de São Paulo há 650 grupos, muitos dos quais fundações ou institutos de grandes empresas, que exercem algum tipo de parceria, que vai da formação de professores e diretores, passando pela ajuda nas reformas físicas, até o desenvolvimento de inovações curriculares.

Apesar de parecer muito, tudo isso é muito pouco. Basta ver a dificuldade de redução da miséria brasileira no geral e o nível da educação em particular. Não se pode negar, porém, que os cidadãos estão menos desatentos, menos desarticulados e menos irresponsáveis socialmente. Daí se consegue entender, pelo menos em parte, como, num campo de futebol, um negro é xingado e um branco vai para a delegacia.

PS - Toda essa articulação ajuda a explicar por que, na semana passada, não parecia mais delírio a discussão no Congresso sobre a proibição do nepotismo. É preciso ser muito tapado para não ver que somos uma nação socialmente selvagem, politicamente indigente e administrativamente incompetente. Assim como é preciso ser tapado para não ver que, apesar disso, o Brasil nunca esteve tão bem, graças à inusitada confluência de democracia, estabilidade política, crescimento econômico, mais recursos destinados à área da educação, da saúde e da assistência, disseminação da visão de responsabilidade social nas empresas e nas escolas e, mais importante, melhor organização da sociedade. É a evidência de que, diferentemente da ditadura, a democracia sempre melhora.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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