Ao mesmo
tempo, eles reclamam de morar numa cidade suja e culpam o
governo pela incivilidade
Desenvolveu-se uma tecnologia de baixo custo para a construção
de caixas-d'água a partir da reciclagem das lixeiras
de plástico. A notícia deveria animar os defensores
do ambiente se a descoberta ecologicamente correta não
se transformasse, na cidade de São Paulo, num negócio
lucrativo e penalmente incorreto: na madrugada, quadrilhas
furtam as lixeiras, ajudando a sujar ainda mais as ruas. O
efeito poluidor das quadrilhas é fortalecido pelos
cidadãos comuns.
Pesquisa realizada pela H2R, divulgada na semana passada,
revela que 76% dos paulistanos admitem jogar lixo na rua,
contribuindo para as enchentes e, assim, atraindo ratos e
baratas. Ao mesmo tempo, eles reclamam de morar numa cidade
suja e culpam o governo pela incivilidade. Essa contradição,
quase cômica, revela a alma nacional e mostra a cidadania
de lixo. A cidadania de lixo é a chave para entender
uma boa parte dos problemas brasileiros. Consiste, em poucas
palavras, em achar que a responsabilidade é sempre
do outro, como se tivéssemos apenas direitos e nenhum
dever. Joga-se o lixo na rua e se reclama de que o gari não
está lá para catá-lo, enquanto os marginais
se organizam para levar as lixeiras, convertidas em negócio.
A essência da cidadania de lixo foi captada pelo Datafolha:
38% dos eleitores paulistanos não se lembram em quem
votaram para vereador. Entre aqueles com ensino superior,
a porcentagem é menor, mas ainda altíssima:
26%. A tradução é a seguinte: se não
se lembram em que votaram, isso significa que nem sequer acompanharam
o desempenho do parlamentar. Assinaram uma espécie
de cheque em branco. É uma alienação
nacional: apenas 28% sabem em quem votaram para deputado federal,
parcela semelhante à dos que não se lembram
quem escolheram para as Assembléias Legislativas. Entre
os que têm ensino superior, a taxa sobe para 48%, mas
continua ridícula. Não chega, portanto, nem
à metade dos eleitores mais educados.
Jogar o papel no chão é apenas o símbolo
de não se sentir dono da rua, imaginada vagamente como
propriedade de um governo, do qual desconfiamos. E, aqui,
mais uma contradição: não se confia nos
políticos, mas se espera deles a solução.
Não há desenvolvimento consistente sem que os
indivíduos sejam protagonistas. Sabemos, por exemplo,
que as melhores escolas públicas são aquelas
em que os pais e a comunidade mais participam. Está
mais do que provado que, quanto mais atento e participativo
for o cidadão, melhor será a gestão dos
recursos públicos.
Há um consenso, nas elites econômicas e intelectuais,
de que a principal razão para o lento crescimento econômico
brasileiro são os gastos públicos -gasta-se
muito e mal. Isso se converte em muitos impostos, poucos investimentos,
afetando a geração de emprego. É uma
das razões, entre várias, da marginalidade juvenil
e, portanto, da violência.
Mostram-se as mais contundentes estatísticas de que
o país deveria mexer nos rombos previdenciários.
Não há mobilização porque, afinal,
o problema não é nosso, mas dos "outros"
-e os "outros", no caso os políticos, não
querem se queimar por falta de apoio popular.
Na lógica da cidadania de lixo, não há
comoção com o fato de que pagamos, por ano,
quatro meses de salário ao governo e de que apenas
5% dos alunos saem do último ano do ensino médio
com conhecimento apropriado de língua portuguesa. O
desperdício é generalizado nas esferas municipal,
estadual e federal. Isso explica desde fatos como a alta incidência
de crianças com anemia por insuficiência de ferro,
os prefeitos comprarem livros didáticos de grupos educacionais
privados e recusarem os gratuitos oferecidos pelo governo,
até os milhões de recursos jogados fora para
treinamento profissional desconectado do mercado de trabalho
ou a decisão dos vereadores de aprovarem, quase por
unanimidade, financiamento público para seus escritórios
eleitorais. Explica também por que Lula se dispõe
a destinar R$ 250 milhões para criar uma TV pública,
enquanto as emissoras educativas estão sem dinheiro.
PS - Nessa rede de irresponsabilidades, entende-se o resultado
da pesquisa divulgada na semana passada: 87% da população
quer tratar, sem distinção, adultos e crianças
infratoras. O problema não seria da falta de educação,
da ausência de empregos, dos programas sociais ou da
fragilidade policial, mas apenas dos marginais. Logo, o melhor
é trancá-los todos juntos, quem sabe numa mesma
cela. Assim como no caso do lixo, a violência nos faz
viver todos na sujeira.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
|