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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
23/04/2007
O cidadão de lixo

Ao mesmo tempo, eles reclamam de morar numa cidade suja e culpam o governo pela incivilidade



Desenvolveu-se uma tecnologia de baixo custo para a construção de caixas-d'água a partir da reciclagem das lixeiras de plástico. A notícia deveria animar os defensores do ambiente se a descoberta ecologicamente correta não se transformasse, na cidade de São Paulo, num negócio lucrativo e penalmente incorreto: na madrugada, quadrilhas furtam as lixeiras, ajudando a sujar ainda mais as ruas. O efeito poluidor das quadrilhas é fortalecido pelos cidadãos comuns.

Pesquisa realizada pela H2R, divulgada na semana passada, revela que 76% dos paulistanos admitem jogar lixo na rua, contribuindo para as enchentes e, assim, atraindo ratos e baratas. Ao mesmo tempo, eles reclamam de morar numa cidade suja e culpam o governo pela incivilidade. Essa contradição, quase cômica, revela a alma nacional e mostra a cidadania de lixo. A cidadania de lixo é a chave para entender uma boa parte dos problemas brasileiros. Consiste, em poucas palavras, em achar que a responsabilidade é sempre do outro, como se tivéssemos apenas direitos e nenhum dever. Joga-se o lixo na rua e se reclama de que o gari não está lá para catá-lo, enquanto os marginais se organizam para levar as lixeiras, convertidas em negócio.

A essência da cidadania de lixo foi captada pelo Datafolha: 38% dos eleitores paulistanos não se lembram em quem votaram para vereador. Entre aqueles com ensino superior, a porcentagem é menor, mas ainda altíssima: 26%. A tradução é a seguinte: se não se lembram em que votaram, isso significa que nem sequer acompanharam o desempenho do parlamentar. Assinaram uma espécie de cheque em branco. É uma alienação nacional: apenas 28% sabem em quem votaram para deputado federal, parcela semelhante à dos que não se lembram quem escolheram para as Assembléias Legislativas. Entre os que têm ensino superior, a taxa sobe para 48%, mas continua ridícula. Não chega, portanto, nem à metade dos eleitores mais educados.

Jogar o papel no chão é apenas o símbolo de não se sentir dono da rua, imaginada vagamente como propriedade de um governo, do qual desconfiamos. E, aqui, mais uma contradição: não se confia nos políticos, mas se espera deles a solução. Não há desenvolvimento consistente sem que os indivíduos sejam protagonistas. Sabemos, por exemplo, que as melhores escolas públicas são aquelas em que os pais e a comunidade mais participam. Está mais do que provado que, quanto mais atento e participativo for o cidadão, melhor será a gestão dos recursos públicos.

Há um consenso, nas elites econômicas e intelectuais, de que a principal razão para o lento crescimento econômico brasileiro são os gastos públicos -gasta-se muito e mal. Isso se converte em muitos impostos, poucos investimentos, afetando a geração de emprego. É uma das razões, entre várias, da marginalidade juvenil e, portanto, da violência.

Mostram-se as mais contundentes estatísticas de que o país deveria mexer nos rombos previdenciários. Não há mobilização porque, afinal, o problema não é nosso, mas dos "outros" -e os "outros", no caso os políticos, não querem se queimar por falta de apoio popular.

Na lógica da cidadania de lixo, não há comoção com o fato de que pagamos, por ano, quatro meses de salário ao governo e de que apenas 5% dos alunos saem do último ano do ensino médio com conhecimento apropriado de língua portuguesa. O desperdício é generalizado nas esferas municipal, estadual e federal. Isso explica desde fatos como a alta incidência de crianças com anemia por insuficiência de ferro, os prefeitos comprarem livros didáticos de grupos educacionais privados e recusarem os gratuitos oferecidos pelo governo, até os milhões de recursos jogados fora para treinamento profissional desconectado do mercado de trabalho ou a decisão dos vereadores de aprovarem, quase por unanimidade, financiamento público para seus escritórios eleitorais. Explica também por que Lula se dispõe a destinar R$ 250 milhões para criar uma TV pública, enquanto as emissoras educativas estão sem dinheiro.


PS - Nessa rede de irresponsabilidades, entende-se o resultado da pesquisa divulgada na semana passada: 87% da população quer tratar, sem distinção, adultos e crianças infratoras. O problema não seria da falta de educação, da ausência de empregos, dos programas sociais ou da fragilidade policial, mas apenas dos marginais. Logo, o melhor é trancá-los todos juntos, quem sabe numa mesma cela. Assim como no caso do lixo, a violência nos faz viver todos na sujeira.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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