Camila
tinha de enfrentar, então, o duplo desafio de ter uma
educação de qualidade, além de não
ter de trabalhar
Camila Mendonça Vieira concluiu, no ano passado, que,
se quisesse entrar numa faculdade pública de medicina,
teria de se submeter a uma lista de prazeres proibidos: viagens,
namoro, festas e judô, seu esporte favorito. A lista
dos prazeres proibidos reflete a consciência de uma
improbabilidade estatística -a chance de Camila virar
médica era como um sonho em estado terminal.
Filha de uma família pobre e desestruturada na cidade
de São Paulo, Camila lembra-se de sua escola pública,
no ensino fundamental, sem saudade: professores desinteressados
e faltosos, banheiros sujos, violência entre alunos
(muitos dos quais mal sabiam ler e escrever), salas de informática
e bibliotecas trancadas. O desafio dela começa no fato
de que apenas 0,6% dos alunos que saem do ensino médio
público, em São Paulo, têm um nível
avançado; em português, o índice é
de 0,1%.
Nível avançado é o mínimo que
se pode esperar de alguém disposto a enfrentar, como
em um curso de medicina, uma disputa de cem candidatos por
vaga.
Por causa desses números, em sabatina promovida pela
Folha, na terça-feira passada, o ministro Fernando
Haddad afirmou que o ensino médio é o elo mais
frágil da educação brasileira. Os sinais
mais visíveis dessa fragilidade são a piora
das notas e o aumento da evasão. Estima-se uma carência
de até 250 mil professores no ensino médio,
especialmente de física, química, matemática
e biologia.
Essas carências são mais um fator a expulsar
os adolescentes da escola. Na sexta-feira passada, o IBGE
informou que 2,4 milhões de adolescentes entre 15 e
17 anos trabalham.
Camila tinha de enfrentar, então, o duplo desafio
de ter uma educação de qualidade para ficar
entre o 0,6% de desempenho avançado de matemática
e o 0,1% em português, além de não ter
de trabalhar.
Para fugir da condenação estatística,
ela passou no concurso para uma escola técnica estadual,
o Centro Paula Souza. De manhã, fazia o ensino médio
regular e, à tarde, nutrição.
Nas noites, debruçava-se nas apostilas de cursinhos
e nos simulados espalhados pela internet. Todo o esforço,
entretanto, não foi suficiente para entrar em medicina.
"Foi quando eu percebi, com clareza, o tamanho da batalha."
Apesar de ter chance de um emprego garantido na área
de nutrição, ela preferiu continuar tentando.
Foi selecionada para uma experiência
desenvolvida pela FIA (Fundação Instituto
de Administração), da USP, com o apoio de empresas
privadas, em que se oferece o cursinho pré-vestibular
em tempo integral, além dos sábados, com direito
a uma bolsa em dinheiro. "Senti que talvez fosse minha
última chance". Foi aí que possíveis
namorados ou qualquer coisa que sugerisse prazer foram riscados
de seu mapa emocional.
Se falhasse, não teria mais como ficar fora do mercado
de trabalho; os recursos da bolsa ajudavam-na a manter as
despesas de sua casa, onde morava com a mãe.
Camila entrou, neste ano, na Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de São Carlos, onde pensa em se especializar
em neurocirurgia ou oncologia. Logo no primeiro dia em que
se mudou para o interior, percebeu que iria enfrentar mais
batalhas para conseguir seu diploma. Quase dormiu na rua.
Ainda não sabe até quando terá os R$
200 mensais para dividir o aluguel de um apartamento, sem
contar os demais gastos. "Sei que, se quiser me formar,
não posso trabalhar."
Com a confiança de ter superado a improbabilidade
estatística e curado um sonho em estado terminal, ela
não parece tão assustada -é mais um dos
obstáculos que terá, seja como for, de enfrentar.
PS - Um bom medidor do desperdício brasileiro de capital
humano está naquela experiência da FIA, da USP
-é um misto de pré-vestibular com quarto ano
de ensino médio, com ajuda para que o jovem não
precise trabalhar. Dos 27 estudantes selecionados, todos de
baixa renda e dispostos a topar a carga horária em
tempo integral, 24 entraram em universidades públicas;
os três restantes foram para faculdades privadas, com
bolsa. É algo semelhante ao que se encontra nas escolas
públicas experimentais de ensino
médio de Pernambuco, onde a gestão é
compartilhada com a comunidade. Testados antes de serem escolhidos,
os professores têm dedicação integral
e ganham prêmios com base no desempenho dos alunos.
É também o que ocorre com a escola
da Embraer para alunos que vêm da rede pública.
Em suma, a cura de sonhos terminais já existe -e a
receita já está nas mãos de jovens como
Camila.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria
Cotidiano.
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