REFLEXÃO


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folha de s.paulo
31/03/2008

A médica dos sonhos em estado terminal

Camila tinha de enfrentar, então, o duplo desafio de ter uma educação de qualidade, além de não ter de trabalhar

Camila Mendonça Vieira concluiu, no ano passado, que, se quisesse entrar numa faculdade pública de medicina, teria de se submeter a uma lista de prazeres proibidos: viagens, namoro, festas e judô, seu esporte favorito. A lista dos prazeres proibidos reflete a consciência de uma improbabilidade estatística -a chance de Camila virar médica era como um sonho em estado terminal.

Filha de uma família pobre e desestruturada na cidade de São Paulo, Camila lembra-se de sua escola pública, no ensino fundamental, sem saudade: professores desinteressados e faltosos, banheiros sujos, violência entre alunos (muitos dos quais mal sabiam ler e escrever), salas de informática e bibliotecas trancadas. O desafio dela começa no fato de que apenas 0,6% dos alunos que saem do ensino médio público, em São Paulo, têm um nível avançado; em português, o índice é de 0,1%.

Nível avançado é o mínimo que se pode esperar de alguém disposto a enfrentar, como em um curso de medicina, uma disputa de cem candidatos por vaga.
Por causa desses números, em sabatina promovida pela Folha, na terça-feira passada, o ministro Fernando Haddad afirmou que o ensino médio é o elo mais frágil da educação brasileira. Os sinais mais visíveis dessa fragilidade são a piora das notas e o aumento da evasão. Estima-se uma carência de até 250 mil professores no ensino médio, especialmente de física, química, matemática e biologia.
Essas carências são mais um fator a expulsar os adolescentes da escola. Na sexta-feira passada, o IBGE informou que 2,4 milhões de adolescentes entre 15 e 17 anos trabalham.

Camila tinha de enfrentar, então, o duplo desafio de ter uma educação de qualidade para ficar entre o 0,6% de desempenho avançado de matemática e o 0,1% em português, além de não ter de trabalhar.

Para fugir da condenação estatística, ela passou no concurso para uma escola técnica estadual, o Centro Paula Souza. De manhã, fazia o ensino médio regular e, à tarde, nutrição.

Nas noites, debruçava-se nas apostilas de cursinhos e nos simulados espalhados pela internet. Todo o esforço, entretanto, não foi suficiente para entrar em medicina. "Foi quando eu percebi, com clareza, o tamanho da batalha."

Apesar de ter chance de um emprego garantido na área de nutrição, ela preferiu continuar tentando. Foi selecionada para uma experiência desenvolvida pela FIA (Fundação Instituto de Administração), da USP, com o apoio de empresas privadas, em que se oferece o cursinho pré-vestibular em tempo integral, além dos sábados, com direito a uma bolsa em dinheiro. "Senti que talvez fosse minha última chance". Foi aí que possíveis namorados ou qualquer coisa que sugerisse prazer foram riscados de seu mapa emocional.

Se falhasse, não teria mais como ficar fora do mercado de trabalho; os recursos da bolsa ajudavam-na a manter as despesas de sua casa, onde morava com a mãe.

Camila entrou, neste ano, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Carlos, onde pensa em se especializar em neurocirurgia ou oncologia. Logo no primeiro dia em que se mudou para o interior, percebeu que iria enfrentar mais batalhas para conseguir seu diploma. Quase dormiu na rua. Ainda não sabe até quando terá os R$ 200 mensais para dividir o aluguel de um apartamento, sem contar os demais gastos. "Sei que, se quiser me formar, não posso trabalhar."

Com a confiança de ter superado a improbabilidade estatística e curado um sonho em estado terminal, ela não parece tão assustada -é mais um dos obstáculos que terá, seja como for, de enfrentar.

PS - Um bom medidor do desperdício brasileiro de capital humano está naquela experiência da FIA, da USP -é um misto de pré-vestibular com quarto ano de ensino médio, com ajuda para que o jovem não precise trabalhar. Dos 27 estudantes selecionados, todos de baixa renda e dispostos a topar a carga horária em tempo integral, 24 entraram em universidades públicas; os três restantes foram para faculdades privadas, com bolsa. É algo semelhante ao que se encontra nas escolas públicas experimentais de ensino médio de Pernambuco, onde a gestão é compartilhada com a comunidade. Testados antes de serem escolhidos, os professores têm dedicação integral e ganham prêmios com base no desempenho dos alunos. É também o que ocorre com a escola da Embraer para alunos que vêm da rede pública. Em suma, a cura de sonhos terminais já existe -e a receita já está nas mãos de jovens como Camila.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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