HOME | NOTÍCIAS | COLUNAS | SÓ SÃO PAULO | CIDADÃO JORNALISTA | QUEM SOMOS
 

toque feminino
23/09/2004

Mulheres usam o grafite para transmitir mensagens à comunidade

Figuras femininas estão despontando nos muros da cidades brasileiras. Estrelas, flores e outros motivos coloridos de mulherzinha destoam dos traços duros típicos do grafite masculino. Elas estão chegando aos poucos, participando de uma oficina aqui e outra ali. E começam a formar grupos, as crews, para planejar suas “ações” - a grafitagem em locais públicos. O movimento já atinge várias capitais. Está online e, em breve, vai ganhar um cadastro nacional reunindo as moças que gostam de desenhar no muro.

É verdade que a presença da mulher no grafite ainda é tímida. Mas há sinais por toda parte de que isto já começou a mudar. No Rio, um desses indicadores é o aumento de meninas inscritas nas oficinas espalhadas por diversas comunidades da cidade, em bairros como a Penha (Zona Norte), a Cidade de Deus e Bangu (Zona Oeste).

Outro sinal claro foi o sucesso do I Encontro Feminino de Grafite, realizado na Fundição Progresso, no Centro do Rio, em julho. O evento serviu para que as artistas urbanas novatas e veteranas da cidade pudessem se conhecer, trocar experiências e formar uma rede.

"Desvirginamos várias meninas! Uma coisa é fazer no papel, outra é meter a cara no muro com a lata de jet", conta Maíra Botelho, a Ira, 20 anos, moradora de Laranjeiras (Zona Sul) e uma das fundadoras do 'TPM Crew' junto com Marcela Zaroni, 26 anos, a Prima Donna, moradora do Méier (Zona Norte).

O TPM, cujo significado tanto pode ser 'transgressão pelas mulheres', como 'tinta para mim', conforme o humor das integrantes, é uma espécie de pólo aglutinador de grafiteiras. Suas criadoras fizeram um fotolog (um site com fotos atualizado diariamente), estão organizando uma lista de discussão na Internet e pretendem, em breve, formar um cadastro com grafiteiras de todo o país.

Organizado pela fotógrafa Andrea Cals e pelas meninas do TPM Crew, o evento reuniu cerca de 14 mulheres, número bastante significativo, na avaliação das organizadoras. Para elas, foi um divisor de águas na mobilização da mulherada.

“O encontro foi primordial, mudou a vida de todas nós”, avalia Vanessa Hanan, a Nêssa, 23 anos, moradora da Tijuca (Zona Norte). Nêssa é namorada do grafiteiro Carlos Esquivel, 26 anos, o Acme, e grafita há três anos. É na oficina ministrada por Acme, todas as quartas-feiras, às 19h , na Fundição, que elas se encontram para treinar os traços e combinar as ações.

Jeito feminino de grafitar
Para quem conhece bem a arte do grafite e o estilo de quem pratica, homens e mulheres se comportam de maneira diferente. “Entre as mulheres há mais cooperação. Os homens se juntam mas cada um faz o seu desenho separado”, analisa Andrea, que fotografa grafite e acredita que esta atividade seja um dos expoentes da arte contemporânea.

“As meninas são mais atentas e aprendem com mais facilidade”, opina Elber Oliveira, 23 anos, o Bel. Ele dá aulas para uma turma mista de 25 alunos na oficina Já é, na sede da Revista Enfoco, na Cidade de Deus. Suas oito alunas são mais assíduas que os rapazes e aprendem com mais facilidade por serem menos afoitas. Acme faz coro com Bel. “As meninas têm mais jeito com o desenho, são mais delicadas. Mas na hora de sair para a rua e ficar debaixo do sol, elas sofrem um bocado”, avalia.

Gabriela Alves Viana, a Beg, 18 anos, moradora de Vila Aliança, em Bangu, fez o seu primeiro desenho no encontro da Fundição. “Há um ano e meio grafitava bombers (letras estilizadas) e nunca tinha feito uma figura. No encontro, minha amiga Lisa fez os bombers e eu desenhei uma boneca”, conta orgulhosa.

Sair para a rua para grafitar ainda é um desafio e para evitar sustos elas preferem planejar as “ações” em conjunto. Beg formou uma crew com outros grafiteiros de seu bairro e está estimulando Gisele Alves Silveira, a Lisa, 21 anos, a ser sua parceira no grupo.

“Quando comecei a curtir grafite, minha avó, de 72 anos, com quem eu moro, dizia que era coisa do demônio e implicava comigo, não me deixava sair”, conta Beg que teve que mostrar para a avó a história do grafite na Internet e provar que o que fazia não era pichação, mas arte.

Atitude e vergonha
Uma outra característica feminina é que muitas chegam até o grafite a partir de uma identificação com o movimento hip hop. “Eles são mais ligados ao grafite em si”, distingue a fotógrafa Andrea Cals.

Cheias de atitude, elas enfrentam o preconceito dos garotos. “Tem sempre alguém que diz que grafite é coisa de homem, que a gente vai acabar virando sapatão”, protesta Lisa. Mas na hora de mostrar o trabalho na parede, é comum bater uma insegurança. É o caso de Bianca Monteiro, a Bia, 18 anos, moradora de Duque de Caxias (Baixada Fluminense). Ela, que começou no grafite depois que conheceu a dança de rua e a cultura hip hop, tem vários desenhos com uma linguagem visual de grafiteira mas nunca teve coragem de levá-los para a parede. “Tenho ainda dificuldade de traçar os desenhos com a lata de jet, fico com medo de fazer algo errado”, revela.

O medo de errar e a vergonha de realizar um desenho que não seja perfeito é comum. Até mesmo a experiente Nêssa, que também compõe letras de rap, só começou a superar suas dificuldades acrescentando mensagens de conscientização aos desenhos do namorado. “Não tenho muita prática em desenho, então faço os bombers”, diz. Mas nem sempre as meninas são estimuladas pelos colegas de muro, que podem se sentir amedrontados com a concorrência. “Eles vêem que não está bom e dizem que está só para não ficar melhor que o deles”, afirma Beg.

Cara a cara
A clandestinidade das ações é um dos fatores que geram tensão na hora de realizar um grafite. É comum uma ação ser interrompida pela polícia e os planos serem modificados. “Depois que mostrei o projeto do desenho, eles me liberaram. Fiquei super nervosa. Depois voltaram para ver o que eu tinha ‘mandado’ e até elogiaram”, conta Beg sobre uma “dura” que levou na Avenida Brasil.

Grafite e pichação são duas atividades diferentes, mas são confundidas com freqüência. O primeiro embeleza locais públicos deteriorados e está ligado a mensagens positivas dentro da perspectiva da cultura hip hop. O segundo é apenas uma maneira de “marcar território” em fachadas e muros de propriedades particulares, sem maiores significados e sem qualquer ligação com a arte.

“Em minha primeira ação, íamos ‘mandar’ no muro de uma escola, mas o guarda mandou parar. Ele até entendeu que não era piche, mas a diretora da escola não quis nem saber”, lembra Arlete Costa, a Pit, 19 anos, moradora da Rocinha (Zona Sul).

A desinformação e o perigo da exposição na rua criam obstáculos para as mais jovens. “Fui convidada para uma ação, mas não pude ir”, lamenta Cláudia Gomes Rodrigues, a Claw, 15 anos, também moradora da Rocinha. Ela é a única menina do grupo Rocinha Grafite e sente dificuldade em convencer a mãe em deixá-la participar das ações. “Ela me pergunta o que é que eu vou fazer com um bando de garotos na rua, mas como insisto muito, às vezes, acaba deixando”, conta Claw.

Dificuldades não faltam na vida de grafiteiro. O preço das tintas e do látex usado para criar fundos nos desenhos é um dos principais problemas. Segundo Bel, são necessárias cerca de 11 latas de tinta em spray e um balde de látex de 3 litros para fazer um desenho simples de 3 metros por 3 metros. Se forem comprados a varejo, cada lata custará cerca de R$ 10 e o látex, R$ 15. Desenhos grandes e multicoloridos demandam uma quantidade ainda maior. “Precisamos de diversos tons da mesma cor para dar volume”, explica Prima Donna.

Cada uma dá um jeito, descolando latas de presente entre amigos, parentes e outros grafiteiros. “Trabalho na associação de moradores de Camará (Senador Camará, na Zona Oeste). Chega no fim do mês, eu estou cheia de planos, mas sempre pinta um imprevisto e acabo não podendo comprar”, diz Beg, que ajuda sua avó em casa com as despesas de seus cinco irmãos.

Identidade feminina
Cores claras e chamativas são as preferidas das grafiteiras que desenham formas femininas, bonecas e bichinhos. “Queremos mostrar que é feito por mulher”, revela Claw. Para Prima Donna, os temas escolhidos revelam uma necessidade de identificação. “Somos mulheres grafitando e temos algo a dizer”, analisa. A preferência também pode ser explicada pela facilidade do desenho. “Geralmente tomamos como referência o nosso próprio corpo. Garotos fazem bonecos e garotas, bonecas”, avalia Maíra, que acredita que ao longo do tempo os temas vão se diversificar. Entre os projetos coletivos do TPM Crew está um painel sobre meio ambiente.

Nem sempre existe uma justificativa feminista para explicar os grafites. “Não sei bem por que faço bonecas. Vou desenhando e vejo que as figuras têm traços femininos”, confessa Beg. “Gosto de desenhar a mulher em posições onde eu possa trabalhar as sombras”, afirma Pit, sobre sua predileção por um dos recursos gráficos.

Consciente ou inconsciente, a expressão artística leva para os muros a visão das grafiteiras sobre o universo feminino. “Para nós é importante veicular imagens que representem nossas raízes étnicas, procuramos fazer traços negros e cabelos cacheados”, opina Prima Donna, sobre os grafites da TPM Crew. Contestar padrões de beleza dominantes também é uma estratégia. “Por que a mulher tem sempre que ser representada como a gostosona?”, questiona Maíra, justificando a imagem de uma gordinha sexy que ‘mandou’ nos arredores da Fundição Progresso.

Outra veterana, Carina Arsênio, a Nina, de 27 anos, que há dez grafita em São Paulo, acredita que existe um traço comum aos trabalhos realizados por mulheres. “A mulher traz uma certa delicadeza e coloca nas paredes aquilo que está em seu dia a dia, não tem como fugir”, avalia. Em seu trabalho, o universo feminino está sempre presente. “Represento uma temática feminina a partir de um olhar infantil”, afirma. Para ela é importante retratar aquilo que quase não vê nas ruas, uma das motivações para fazer uma mãe amamentando em sua última visita ao Rio de Janeiro, na Rocinha.

Arte pela Paz
Transmitir alguma mensagem através de seus desenhos é o objetivo de todas as grafiteiras. Críticas ao governo, mensagens de paz, reivindicação de direitos iguais para homens e mulheres são transpostos para o muro. “Faço desenhos infantis para chamar a atenção das crianças para outros caminhos além da bandidagem”, explica Beg, que acredita que grafitar pode ser uma maneira positiva de mobilizar as crianças de sua comunidade.

É, ao jeito delas, a maneira encontrada para 'gerar' consciência e modificar o comportamento 'rebelde sem causas' da juventude. “Quando estou no muro, encontro uma paz total. Acredito que qualquer forma de arte é válida e chego a escrever essa mensagem junto aos desenhos”, revela Lisa.

Para elas, não há planos de tornar a atividade uma opção profissional. “Se vai dar futuro ou não, vou ver depois. É meu hobby”, avalia Beg, que desde que começou a andar por aí com uma lata de jet está mais atenta às diversas manifestações artísticas. Nas aulas de grafite, elas aprendem noções de desenho, anatomia humana e a criar uma variedade enorme de bombers.

MARINA LEAL
do site Beleza Pura

 
 
 

NOTÍCIAS ANTERIORES
22/09/2004 Comunidade da Urca refloresta morro e combate incêndios
21/09/2004 Moradores se unem para salvar área verde preservada em favela carioca
20/09/2004 Cine Pop Brasil leva para favelas seleção de produções nacionais
17/09/2004 Orsa completa 10 anos e comemora sucesso de ações na área social
17/09/2004 Empresa aposta na reciclagem de materiais
16/09/2004 Alunos de escolas públicas e privadas ajudam portadores de diabetes
15/09/2004 Mulheres usam rádios e internet para abordar temas da comunidade
15/09/2004 Freira discute como garantir cidadania aos moradores de rua
15/09/2004 Projeto ajuda jovens a desenvolver habilidades artísticas
15/09/2004 Assentamentos atuam na gestão ambiental