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Ganhamos
Não
há registro na história brasileira de uma ação
de tamanho impacto promovida por delinquentes, como se viu,
na segunda-feira passada, quando o Rio de Janeiro fechou as
portas devido às ameaças de traficantes -era
como se fosse decretada, na marra, uma greve geral.
As portas
fechadas pelo pânico foram um dos melhores retratos
da barbárie e da sensação de vulnerabilidade
já produzidos no Brasil. Resumiram-se ali os efeitos
da exclusão social tão alardeados nas promessas
de segurança dos candidatos: seja a falta de segurança
nas ruas, repletas de marginais, seja a instabilidade nas
empresas, onde é grande o risco de demissões.
O mais
profundo "discurso" político, nestas eleições,
entretanto, não foi proferido por nenhum candidato,
mas emanou de um filme -"Cidade de Deus"-, em que
se revela a cadeia de omissões que combina baixa escolaridade,
desemprego, subemprego, drogas, ausência de lazer e
desestruturação familiar com impunidade e corrupção
policial.
Na semana
final das eleições, vimos a convivência
da barbárie marginal com a civilidade democrática.
Mesmo
levando em conta as baixarias, as demagogias e as asneiras
mercadológicas, estamos assistindo a uma disputa civilizada,
sem violência. Os candidatos, cobrados pelos meios de
comunicação e pelos eleitores, esforçam-se
para mostrar propostas, e a Justiça, por sua vez, coíbe
rapidamente os abusos. A atitude do presidente da República
é de tolerância; ele procura agir como um facilitador,
criando um ambiente de transição pacífica;
o governo federal apanha, mas a figura do presidente é
preservada. Ninguém, nem remotamente, fala em retrocesso
institucional, inquietação nos quartéis,
rebeliões etc. Quem acenou com dossiês e golpes
baixos deu-se mal.
É
uma extraordinária síntese do país que
será administrado pelos vitoriosos das urnas: convivem,
lado a lado, barbárie e sofisticação
política, estabilidade democrática e instabilidade
social. A grande interrogação embutida na disputa
eleitoral é saber como, se e com qual velocidade os
governantes enfrentam o cerco crescente da barbárie.
O ânimo
nacional, escancarado nas eleições, está
baseado num exagero: acredita-se que nada ou quase nada tenha
mudado. Para muitos, o Brasil está pior. O sentimento
é verdadeiro, mas a informação é
equivocada. Indicadores de saúde e de educação
revelam uma nação melhor em vários aspectos;
desenvolveram-se, no país, programas sociais de abrangência
inusitada.
O governo
aproveita-se das estatísticas para se defender. Mas
elas não convencem. É natural o pouco entusiasmo
(especialmente de quem mora em regiões metropolitanas
ou grandes cidades) diante das estatísticas. São
pessoas que, sitiadas, vêem engrossar o número
de desempregados.
Se é
verdade que, socialmente, houve avanços (e o governo
tem razões em não se sentir reconhecido), também
é verdade que esses avanços não alteraram
a essência injusta e desigual do país (e aí
a oposição tem razão em bater na tecla
da mudança).
Há
uma percepção -aliás, correta- de que
poderíamos ser muito mais do que somos. Nações
bem mais pobres do que o Brasil exibem níveis muito
melhores de educação, de salário, de
distribuição de renda e de saúde.
Um dos
vários problemas do próximo governo é,
paradoxalmente, o fato de o Brasil ter avançado. Mais
gente na escola significa mais expectativas de melhores empregos.
São brasileiros que apostam na educação,
conseguem chegar ao ensino médio e, com muito esforço,
cursam uma faculdade privada. A falta de emprego -ou a resignação
a um emprego ruim- vai engendrar uma geração
de frustrados e de rebeldes. Espere para ver: o movimento
dos sem-universidade, essencialmente urbano, vai fazer muito
mais barulho do que o movimento dos sem-terra.
A partir
de hoje, os candidatos começam a descer dos palanques
e a realidade começa a subir às suas cabeças.
Empossados, devem se justificar, alegando que a herança
recebida era pior do que imaginavam; vão reclamar da
falta de apoio dos políticos, da pouca compreensão
da imprensa, e por aí vai. Vão dizer em janeiro
o que obviamente sabiam desde muito tempo: mudança
vem devagar, é preciso ter paciência.
Mudança significa nada mais, nada menos do que fazer
maior o Brasil civilizado diante do Brasil da barbárie.
P.S. -
Tenho 46 anos e nunca tinha presenciado, no Brasil, uma eleição
de tão elevado nível, com tantos debates e com
a divulgação de propostas administrativas disseminados
nessa amplitude. Os livros de história não me
mostram outros casos no país. Houve muitos atritos,
é claro. Mas pouco ódio. O eleitor queria mais
solução do que fofoca e pancadaria. A imprensa
cumpriu bem seu papel, e o presidente da República
se comportou (pelo menos até agora) com equilíbrio.
A combinação de maturidade democrática
com aumento da escolaridade está, como se vê,
surtindo efeito. Pelo menos nesse aspecto, entre tantas derrotas
sociais, todos ganhamos.
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