Fama
de galinha
Ao atirar uma galinha contra a prefeita Marta
Suplicy, na segunda-feira, durante as comemorações
do centenário do Centro Acadêmico XI de Agosto,
o estudante Ernest Hellmuth transformou-se na celebridade
da semana. Virou estrela da mídia e um político
chegou a lançá-lo candidato a vereador.
Na carona da notoriedade fugaz do filho, o
engenheiro Harold Hellmuth declarou, satisfeito, à
imprensa: "Demos boas gargalhadas. Ele é precoce
até em obter seus 15 minutos de fama".
Mas o que faria Harold se, ao entrar na cozinha
de sua casa, a sua brincalhona empregada lhe atirasse um galinha?
Certamente não daria risadas - tocaria a empregada
para a rua e diria que ela enlouqueceu. Por que ele não
só tolera mas incentiva o filho a agir com uma irreverência
que transborda para o desrespeito?
Quem convive com educadores que trabalham
com jovens de classe média sabe que a brincadeira de
Hellmuth não é um episódio isolado. A
irreverência que redunda em deboche é rotina
em sala de aula e faz do professor uma vítima -vítima
também dos pais, que não conseguem ou não
querem lidar com os limites de seus filhos.
A dificuldade de perceber e respeitar o outro
acaba de ser medida por uma pesquisa da Ipsos Brasil em nove
capitais brasileiras com estudantes de escolas privadas. O
resultado é estarrecedor. Entre os entrevistados, 59%
disseram que "fazem o que querem e não se preocupam
com os outros".
É um enfrentamento das regras de convivência.
Isso explica por que, segundo a pesquisa, 45% dos alunos das
escolas privadas dizem que, "em alguns momentos, é
aceitável desobedecer à lei".
Apenas num ambiente de percepção
da impunidade tantos jovens desenvolveriam tamanho desdém:
82% deles vêem falhas na Justiça e acreditam
que a impunidade seja a regra, o que, no seu entender, explica
por que a criminalidade chegou tão longe.
A violência fez os muros subirem e as
grades serem implantadas, distanciando ainda mais o outro.
O espaço de convivência público é
o espaço da ameaça nos grandes centros.
Nas reuniões reservadas das escolas,
professores e psicólogos falam frequentemente da sensação
de impotência diante da atitude de alunos. Percebem
uma desmotivação crônica, gerada pela
falta de valores e de objetivos, assustam-se com o consumo
de drogas e de álcool nas festas, constatam a dificuldade
crescente, para os jovens, de entrada no mercado de trabalho,
cada vez mais exigente.
Muitas vezes, a escola é mais um dos
cenários de marginalidade, incapaz de se adaptar ao
novo ritmo de conhecimento. A era da informação,
com sua multiplicidade de estímulos, está gerando
jovens hiperativos, com dificuldade de selecionar informações
relevantes, mergulhados na avalanche diária de dados:
assistem à TV, submetida ao ritmo de metralhadora giratória
do controle remoto, ao mesmo tempo em que falam ao telefone,
ouvem o rádio, plugam-se na internet e ainda tentam
fazer a lição de casa.
Nesse ambiente interativo, virtual e tridimensional,
adaptar-se à linearidade do livro é um suplício.
Como é um suplício a aula de apenas uma dimensão,
na qual o professor, que sabe tudo, fala para o aluno, que
não sabe nada.
As escolas que têm conseguido lidar
melhor com esse desdém coletivo são aquelas
que, além de abrir canais de diálogo com os
pais e os alunos, aproximam o cotidiano da sala de aula e,
além disso, estabelecem laços com a comunidade,
fazendo da rua uma extensão do aprendizado.
É extraordinária a transformação
dos estudantes quando participam de trabalhos comunitários
e vivenciam o valor do conhecimento. Daí que esse tipo
de atividade deveria ter, na grade curricular, seu status
equiparado ao de matérias como ciências, português
ou matemática, pois ensina a perceber o outro e a saber
conviver com ele um requisito indispensável de civilidade.
Não distinguir a ofensa da irreverência
é algo que se deve à falta de percepção
do outro, sintoma de um culto ao individualismo, o que hoje
se mistura ao narcisismo dos tais 15 minutos de fama, que
fazem um jovem e uma galinha subitamente virarem estrelas.
A pouca consistência dessa fama faz
lembrar a inconstância atribuída a homens e mulheres
que não param de "ciscar" com qualquer um
e em qualquer lugar -e tornaram galinha um adjetivo próprio
para designar aqueles que agem com superficialidade.
A fama de galinha é o que melhor expressa
a ansiedade pela notoriedade rápida e a qualquer custo.
PS - Coloquei na página do
Aprendiz (www.aprendiz.org.br) a pesquisa da Ipsos Brasil,
na qual se comparam os estudantes de escolas particulares
com os de escolas públicas. É possível
observar que, apesar das diferenças econômicas,
a percepção de mundo dos dois grupos é
semelhante.
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