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Lula
será julgado pela sua capacidade de criar empregos
Desde que assumiu
a presidência, uma das principais tarefas de Luiz Inácio
Lula da Silva será a criação de postos de trabalhos.
Pode ser que o governo não alcance a meta de 10 milhões
de empregos prometidos durante a campanha eleitoral, nem mesmo os
8 milhões prometidos por José Serra.
Mas, em 2006,
o que pesará para Lula será o balanço efetivo
de empregos criados contra o de vagas fechadas. Isso porque o homem
comum não mede o desempenho do governo como fazem os economistas,
de olho no cumprimento das metas de inflação, por
exemplo. O novo presidente inicia seu governo sob uma política
de austeridade, que vai implicar um crescimento baixo em 2003 -
as previsões giram em torno de 2% do PIB.
Além
do mais, em consequência do desemprego, o empreendedorismo
no país acontece às duras penas para aqueles que estão
fora do mercado. Segundo o relatório da Global Entrepreneuership
Monitor (GEM), coordenado no Brasil pelo Instituto Brasileiro da
Qualidade e Produtividade no Paraná (IBQP), em parceria com
o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (Sebrae), entre 37 países o Brasil está em
sétimo lugar em iniciativa empreendedora. Em 2001 estava
em quinto. Em 2000, em primeiro. Hoje, o país ocupa o pódio
por exibir a maior taxa de abertura de negócios por necessidade:
55% dos novos empreendedores escolheram abrir deu próprio
negócio não por vocação, mas por sobrevivência.
Leia
mais:
- O duro país dos pequenos
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O
duro país dos pequenos
Flávio
da Silva queria emprego mas não conseguia. Depois da última
demissão, só encontrou portas fechadas. A mulher,
Marlene, sonhava com a casa própria, mas o salário
de costureira garantia apenas um quarto-e-sala no cortiço.
Juntaram o dinheiro das rescisões, compraram a primeira máquina
usada e montaram uma confecção.
Outro paulista,
Oiliznod Santana, foi de montador a supervisor de produção
de uma empresa de eletrônicos, mas a fábrica faliu,
o próximo posto já significou uma queda de salário
e prestígio e, na busca de uma vaga, descobriu que sua renda
não cessaria de cair. Quando avisou a esposa, Rosana, que
abriria o próprio negócio porque não andaria
para trás na vida, ela chorou. Haviam sido criados para prosperar
como empregados, com salários e benefícios no fim
do mês. Foram pegos pela crise, que comeu um naco do mercado
de trabalho do país.
O mesmo se passava
com a pernambucana Patrícia Machado, que não só
perdia o serviço como teve a dignidade comprometida por cheques
sem fundo passados pelo ex-patrão. Sacou as economias guardadas
para pagar a faculdade, limpou o nome e iniciou uma fábrica
de temperos vendendo pacotes de alho pelas ruas de São Lourenço
da Mata num carrinho de mão.
É assim,
sem glamour nem fogos de artifício, que se constrói
o empreendedorismo do país. Relatório da Global Entrepreneuership
Monitor (GEM), coordenado no Brasil pelo Instituto Brasileiro da
Qualidade e Produtividade no Paraná (IBQP), em parceria com
o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (Sebrae), instalou o Brasil, entre 37 países, em
sétimo lugar em iniciativa empreendedora. Em 2001 estava
em quinto. Em 2000, em primeiro. Hoje, o país ocupa o pódio
por exibir a maior taxa de abertura de negócios por necessidade:
55% dos novos empreendedores escolheram ser patrões não
por vocação, mas por dificuldade de encontrar trabalho.
'O empreendedorismo
brasileiro é o da desesperança, movido pelo descrédito
no emprego', afirma o economista Márcio Pochmann, secretário
do Trabalho de São Paulo. 'Mais que superação
da pobreza, é estratégia de sobrevivência.'
Os novos desbravadores
da iniciativa privada são brasileiros empenhados não
em ficar ricos, mas em manter a cabeça na superfície.
Eles comandam, segundo pesquisa do BNDES, 16 milhões de micronegócios.
Quase 80% deles são informais, por não conseguirem
produzir lucro suficiente para arcar com o pacote tributário.
O que ganham mal dá para sustentar a família, manter
a empresa em pé e pagar os funcionários. 'Os efeitos
sociais dos pequenos negócios muitas vezes são lamentáveis.
Não recolhem
tributos, não se enquadram na legislação trabalhista
nem sanitária e geram emprego de baixa qualidade', aponta
o economista João Batista Pamplona, autor do livro Erguendo-se
pelos Próprios Cabelos - Auto-Emprego e Reestruturação
Produtiva no Brasil. 'Nesses casos, a terceirização
vira precarização e as empresas para quem prestam
serviço lavam as mãos.'
Na cadeia produtiva,
a realidade mostra que cabe aos pequenos o quinhão mais minguado.
Enquanto a empresa no topo tem os certificados ambientais e sociais
exigidos pelo terceiro milênio, a base está décadas
atrás na legislação, construindo um complexo
mundo da produção, parte dele invisível.
As grandes empresas
economizam empregos e salários sem manchar a fachada e os
expulsos do mercado de trabalho fornecem matéria-prima produzida
com mão-de-obra barata e desassistida. Até o terceiro
ano de atividade, metade dos micronegócios e um terço
dos pequenos e médios fracassam. E mais uma vez os empreendedores
vão às ruas buscar caminhos para garantir três
refeições por dia e futuro.
Flávio,
de 45 anos, e Marlene, de 43, conseguiram chegar ao quinto ano da
confecção que montaram com o dinheiro da demissão.
Na parede da pequena sala nos fundos da casa alugada no bairro do
Ipiranga, em São Paulo, o lema que embala o sonho de um dia
desembarcar numa vida confortável: 'Saúde, coragem,
perseverança'. Ele, a mulher e três costureiras trabalham
14 horas por dia sem ver a luz do sol e sem dia de descanso, montando
peças que já recebem cortadas para outras três
confecções de grife. Pela mais bem paga, uma blusa
elaborada, recebem R$ 4. É vendida a R$ 80 nos shoppings.
Entregam 6 mil unidades de modelos variados por mês. Chegam
a ganhar R$ 3 mil mensais. A empresa ainda não foi registrada,
as funcionárias não têm carteira assinada e
recebem entre R$ 250, a menos qualificada, e R$ 600, a mais bem
preparada.
Flávio
e Marlene sonham com a casa própria. Hoje, a maior alegria
é uma pizza à portuguesa no fim de semana. Não
esperam que a filha continue o negócio. 'Ela vai poder fazer
universidade e ser o que quiser', deseja Marlene. Rosa de Souza,
de 33 anos, uma das costureiras, aspira a repetir a proeza dos patrões,
comprar uma máquina e trabalhar por conta própria.
Ela acorda às 4h20 da manhã e só volta para
casa às 21 horas. Quando chove, a TV é ligada na confecção
para se saber se a região em que Rosa vive alagou. Se as
notícias são ruins, Rosa tem de dormir no emprego.
A apregoada
criatividade do brasileiro, simbolizada pelo camelô que no
primeiro pingo de água aparece com um guarda-chuva, é
essa: sobreviver. O empreendedorismo ganhou mais força a
partir dos anos 90, no ventre da crise que jogou milhões
de habitantes de países em desenvolvimento na exclusão.
Há quem
defenda a transformação de empregados em patrões
como saída para o desemprego, que, segundo as estatísticas
oficiais, atingiu 7% da população em 2002. Se as pequenas
empresas têm papel estratégico na economia, para a
maioria delas há um longo caminho entre o que o sociólogo
José Pastore chama de emprego de primeira classe (salário
e benefícios) e o de quinta classe (rendimento baixo e nenhuma
assistência).
'Há um
grande potencial para os pequenos negócios, mas é
preciso reformar as leis trabalhistas e previdenciárias para
diminuir encargos e burocracias', defende. 'O futuro é uma
mescla de emprego e trabalho, mas a maioria ainda vive na selva
da informalidade.'
Ser patrão
está tão na moda que até os vendedores nos
faróis das grandes cidades, esperneando contra a miséria,
são chamados de microempreendedores. Exemplos de brasileiros
que se fizeram do nada, calcados numa genialidade atribuída
à genética verde-amarela, são pinçados
para semear a idéia de que qualquer cidadão de boa
vontade pode fazer seu primeiro milhão na terra das oportunidades.
Se é
fantástica a história de David Mendonça Portes,
o camelô carioca sem diploma que ganha R$ 5 mil por palestra
em que ensina como se tornar um self-made man de sucesso, ele é
a exceção, nunca a regra. Como foi em seu tempo seu
colega Silvio Santos, que de vendedor de panelas nas ruas de São
Paulo se transformou no milionário dono de um dos maiores
grupos de comunicação do país.
O perigo é
querer transformar o que foi conquistado por poucos numa possibilidade
acessível a milhões de brasileiros com baixa escolaridade
e escasso capital. Nessa embalagem, o empreendedorismo, que pode
ser um caminho razoável para muitas pessoas e uma ótima
solução para exemplos que se contam nos dedos de uma
mão, chega a ser vendido como um daqueles tônicos que
curam desde bicho-do-pé até câncer.
'Ao contrário
dos imigrantes que se engajaram na urbanização do
país, as pessoas hoje partem para fazer a vida de bases diferentes,
uns com mais escolaridade e capital, outros sem nem um nem outro',
diz a historiadora Tânia de Luca, autora do livro Indústria
e Trabalho na História do Brasil (Editora Contexto, 2001).
'O mundo do trabalho mudou, mas o sonho da virada do milênio
não é ser patrão, é ter carteira de
trabalho assinada.'
Debruçado
sobre o estreito balcão de seu comércio, com vista
para o labirinto de vielas de Heliópolis, a maior favela
paulistana, João Alves, de 31 anos, explica: 'Sou patrão
não porque eu quero, mas porque o governo quer. Se pudesse
escolher eu queria um emprego, benefícios, férias
e horário'. Cearense, ele desembarcou no fim dos anos 80
em São Paulo, foi balconista de loja e metalúrgico.
Demitido em
1997, procurou serviço durante um ano e, depois de perder
a fé com a sucessão de placas de 'não há
vagas', resignou-se em ser patrão. Ganha R$ 700 por mês,
trabalha 15 horas por dia de domingo a domingo, não tira
férias nem tem plano de saúde. Para aumentar o lucro,
aprendeu a fazer alvejantes no fundo do quintal. Tentou outros produtos
de limpeza, mas não acertou a química. Atento às
necessidades da clientela, sabe que quando o feijão sobe
de preço ele só vai vender farinha. E vice-versa.
João, como os vizinhos da favela, se vira.
'Em geral, o
auto-emprego perpetua a pobreza sem garantir mobilidade social',
afirma Pamplona. 'Mas para uma parcela significativa as mudanças
produtivas criaram oportunidades. São pessoas que têm
capital, conhecimento da área e boa rede de relacionamentos.'
O Relatório
GEM 2002 mostra que a categoria mais dinâmica na criação
de empreendimentos se situa na faixa de renda familiar entre seis
e nove salários mínimos e tem entre cinco e 11 anos
de estudo. As áreas de maior oportunidade para novos negócios
são justamente as que envolvem tecnologia de ponta, como
desenvolvimento de softwares e biotecnologia, acessíveis
apenas a quem tem capital e conhecimento.
Na vida real,
a maior concentração de pequenos negócios está
nos setores de comércio varejista. Apenas 24% do total de
empreendedores tem possibilidade de expansão de mercado no
Brasil e só 6% pretendem exportar.
A lógica
é a de sempre: para os mais pobres, os mesmos que foram atingidos
pelo encolhimento da indústria, é mais difícil
ser patrão. O microcrédito, empréstimo de pequenas
quantias para os pobres, despontou nos últimos anos como
uma das principais estratégias para capitalizar os pequenos
e impedir a migração de uma parcela da população
para a exclusão.
Apesar de ter
se iniciado no Brasil nos anos 70, a experiência ainda é
incipiente. Nos últimos sete anos foram investidos apenas
R$ 130 milhões no país inteiro. Gigantes privados,
como o Real ABN Amro Bank e o Unibanco, começam a se interessar
pelo assunto. A Real Microcrédito lavrou seu primeiro contrato
em agosto. O projeto, que só se tornará auto-sustentável
em quatro anos, foi iniciado pelas regiões paulistanas de
Heliópolis e Sapopemba, onde deixou R$ 100 mil em 2002.
O Unibanco assinou
no fim de novembro um acordo com o Banco Mundial para a criação
da Microinvest. Desde 1998, a Fininvest, controlada pelo mesmo banco,
já emprestou R$ 6 milhões em mais de 4 mil créditos
à população de baixa renda no Rio de Janeiro.
A operação
de microcrédito é cara e bem diferente daquela a que
os bancos comerciais estão acostumados. Os agentes, recrutados
na periferia, batem na porta do potencial cliente oferecendo dinheiro,
ajudam-no a fazer o balanço do negócio, geralmente
limitado ao registro na caderneta, e verificam quanto podem emprestar
com segurança. Em geral, as ações de microcrédito
são colocadas no braço de responsabilidade social
das corporações, com lemas politicamente corretos
como 'agregar valor à comunidade'. Não visam ao lucro
monetário, mas à melhoria da imagem institucional,
já que o mercado financeiro é o vilão preferencial
quando a economia de um país entra em crise e os tempos exigem
uma embalagem colada ao social.
O montante anual
de empréstimos custa mais barato - e possivelmente tem mais
retorno - que uma campanha publicitária. 'Acho que se trata
menos de obter uma imagem positiva e mais de evitar uma imagem ainda
mais negativa', admite o gerente-geral da Real Microcrédito,
Flavio Weizenmann. Executivo do mercado financeiro há 25
anos, ele emocionou-se ao visitar a Unas, entidade que reúne
as associações de moradores de Heliópolis.
Ao dizer que o banco já havia investido R$ 17 mil na favela,
o presidente da sociedade arregalou os olhos: 'Mas isso é
muito dinheiro!' Weizenmann voltou ao escritório pensativo.
'Um almoço de negócios custa mais do que o que emprestamos
a cada um e eles mudam a vida', concluiu.
Os caminhos
mal pavimentados das periferias reservam pedregulhos aos executivos
do sistema financeiro. A Real Microcrédito, por exemplo,
lançou uma linha de R$ 500 a R$ 10 mil. Constatou que seus
clientes não ultrapassariam os R$ 5 mil. A grande surpresa,
porém, foi a fatia de fregueses potenciais com o nome sujo
na praça. O banco havia projetado uma restrição
de no máximo 30%. Descobriu que quase 80% do público
estava marcado nos arquivos da Serasa e do SPC. E o curioso: a maioria
por não pagar os carnês das Casas Bahia, o exemplo
mais espetacular de um império construído na venda
a crédito para os pobres pelo judeu-polonês Samuel
Klein, espécie de herói popular do capitalismo brasileiro.
Os pequenos
capitalistas da sobrevivência têm mais chance de conseguir
empréstimo nos programas públicos. O São Paulo
Confia, da capital paulista, é um dos poucos que garantem
crédito mesmo que o candidato esteja carimbado pela inadimplência
ou não tenha fiador. Em um ano, já emprestou R$ 3,2
milhões a mais de 3 mil clientes. Agente da prefeitura, Silvane
da Silva, de 24 anos, depara com fregueses que não querem
lhe estender a mão, envergonhados pelas marcas do trabalho
braçal. Despachada, ela desfaz o constrangimento: 'Se a sua
mão fosse lisa, eu não dava crédito para o
senhor'.
Eles são
os sem-banco, exército de brasileiros que ingressaram no
capitalismo na marra e para quem um aperto de mão e tratamento
respeitoso é uma novidade que lhes arranca lágrimas.
'Para gente como eu, é mais fácil entrar na Nasa que
abrir conta em banco', diz Marco de Oliveira, de 24 anos, que ganha
a vida como sucateiro em São Paulo, usando uma área
invadida como depósito, faturando R$ 300 por mês e
empregando outro mais pobre por R$ 10 o dia de serviço. Espera
um empréstimo de R$ 1.000 para capital de giro. 'Meu sonho
não é ir para a Disney, mas poder sustentar uma família.'
Em pesquisa
para a fundação alemã Konrad Adenauer, a partir
de uma amostra de 200 auto-empregados da região metropolitana
de São Paulo, o economista João Batista Pamplona descobriu
que, entre os mais pobres, a minoria que alcança sucesso
tem uma característica comum: escolha. Para eles, nenhum
emprego é melhor que ser patrão de si mesmo. Donos
de um projeto de vida, decidiram não ser empregados, ao contrário
da maioria, que foi empurrada para o empreendedorismo por falta
de opção.
É o caso
de Vera de Souza, de 45 anos, dona de um pequeno bufê de comida
caseira em São Paulo. 'Não gosto de ser nem mandada
nem corrigida. Sou abusada', apregoa.
Vera descobriu a tão falada veia empreendedora quando não
tinha dinheiro para comprar chocolate para os filhos e deu um jeito
de fazer ovos de Páscoa no fogão de casa. Logo começou
a vender os doces e nunca mais parou de inventar uma maneira de
cumprir o projeto que a carregou no pau-de-arara um dia depois do
casamento, analfabeta, do interior de Pernambuco para a maior cidade
do país: telefone, televisão, carro e visitas aos
parentes de avião. Do pacote de utopias, só falta
o sítio. É esse sonho que tempera a rotina de 12 horas
por dia sem férias nem domingo a cada vez que bota pimenta
na panela para enfeitiçar a freguesia.
(Época
- 07/01/03)
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