01/08/2008

Também presentes à criação

Roubei o título e a citação do economista canadense Michael Hart, que, por sua vez, se servira de Holmes, o qual se referia a Dean Acheson e, por essa intermediação, a Afonso, o Sábio, de Castela. Fiz isso por dupla razão. Primeiro, por achar apropriada a idéia de “presente à criação” na introdução de obra dedicada a conceito em formação, em processo de evolução, um “work in progress”. Mais ainda, porque esse mesmo conceito tem como conteúdo principal a criação de condições para favorecer a criatividade. Tudo a ver, portanto.

Além disso, nada ilustraria melhor a natureza da criatividade, que quase sempre depende de longa série de criatividades de outros que nos precederam, do que desfiar o novelo emaranhado de pensamentos que nos levam de um autor àquele que o inspirou e assim por diante.

O começo do meu novelo pessoal de contactos com a economia da cultura ou da criatividade data de várias décadas atrás, tanto tempo que não recordo bem a data nem as circunstâncias. Estava lendo um livro de John Kenneth Galbraith, talvez “The Affluent Society”, e lembro apenas de minha reação de incredulidade diante da profecia de que, em futuro não muito distante, o motor da economia seria a produção e o consumo de bens culturais. Pura ficção de intelectual sonhador, pensei.

Pois bem, conforme escreve John Howkins nas primeiras linhas do seu “The Creative Economy”, em 1997, os Estados Unidos produziam US$ 414 bilhões em livros, filmes, música, programas de TV e os produtos cobertos por copyright tornaram-se a exportação número um do país, ultrapassando carros, substâncias químicas, computadores, aviões, roupas.

Em livro posterior, “The Culture of Contentment”, o próprio Galbraith admite que a concentração na produção e consumo de bens culturais não é para todos. Haverá divisões e exclusões no seio das sociedades avançadas e entre estas e as demais, aquelas onde a maioria das pessoas continuará, segundo as palavras de Thoreau, a levar vida de “quiet desperation”, de calado desespero e de trabalho embrutecedor.

Não obstante, é inegável que a economia criativa representa claramente o futuro e esta obra vem recheada de cifras e argumentos para não deixar dúvidas sobre a direção para a qual aponta a curva da expansão econômica. O rumo é o da crescente acumulação de riqueza em bens intangíveis, em larga medida produtos da engenhosidade, da criatividade humana e relativamente pouco dependentes dos fatores tradicionais de produção associados a vantagens naturais, capital, mão de obra barata. O que conta mais e mais é a infinita e maravilhosa capacidade do ser humano de tirar algo do nada ou quase nada, a partir de sua interioridade e de sua interrelação construtiva com os outros, reflexo, dirão os crentes, da fagulha divina que fez com que Deus deixasse inacaba sua criação a fim de que pudessem os homens ajudar a completá-la.

Uma das coisas maravilhosas da criatividade é que ela brota até em terrenos pobres e de pouca água. “O Espírito sopra aonde quer” e suscita talentos naturais em toda a parte. Saint Exupéry lamentava os incontáveis pequenos Mozarts que se perdiam por falta de oportunidades e de cultivo. Essa revelação foi o passo seguinte de meus contactos, já aí profissionais, com o tema.

Como Secretário Geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), acompanhei com interesse o trabalho realizado por uma de nossas funcionárias mais brilhantes, Zeljka Kozul-Wright, com o governo jamaicano. A Jamaica é, como Cuba, aliás também ilha caribenha de cultura e sociedade formadas sob a influência da produção de açúcar por população de origem africana, uma das fontes mais ricas e originais de geração inesgotável de rítmos e músicas que marcaram fortemente o jazz e a música popular de nosso tempo. Basta pensar que a influência do reggae tem sido avassaladora até no distante Maranhão e mesmo na Bahia, berço igualmente de incontáveis modas musicais.

Acontece que muito pouco, para não dizer quase nada, dos benefícios materiais aportados pelos rítmos e músicas jamaicanos ficam no país de origem ou redundam em melhoria de vida para as pessoas do povo da ilha, afinal o caldo de cultura de onde brota tanta invenção. Os músicos e intérpretes emigram para Londres ou Nova York, se é que já não vivem nesssas cidades, sedes também das companhias que monopolizam a impressão, distribuição, venda de discos, detendo os direitos de propriedade sobre a exploração daquilo que foi, num momento, o reflexo do patrimônio comum e anônimo do povo.

O projeto de Kozul-Wright visava a diagnosticar a situação e, a partir desse levantamento, trabalhar com o governo e a comunidade para a criação de agências capazes de melhor proteger a propriedade intelectual originária do país. Um dos objetivos era a adoção de políticas públicas para fomentar o desenvolvimento dos talentos naturais, ajudando-os no aperfeiçoamento técnico e impulsionando a criação de uma indústria musical local. O êxito desse trabalho pioneiro levou-o gradualmente a atrair a atenção de toda a região caribenha, de Cuba, de países africanos.

Em maio de 2001, as iniciativas em torno do assunto estiveram em posição destacada em Bruxelas, na grande Conferência das Nações Unidas sobre os Países Menos Avançados, os Least Developed Countries ou LDCs da nomenclatura da ONU, que constituem os pobres dentre os pobres, as 50 economias mais vulneráveis do mundo, das quais 34 na Africa. Desde então, as “creative industries” ou economia criativa se converteram num dos programas da UNCTAD para promover o desenvolvimento de países da África, Ásia, América Latina, Caribe, mediante o pleno aproveitamento do seu potencial cultural em termos de desenvolvimento econômico e social.

Todo esse esforço culminou na XI Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento em São Paulo, em junho de 2004, da qual saíu o programa sistemático da UNCTAD na área, sob a liderança de uma das profissionais mais dinâmicas e competentes das Nações Unidas, a brasileira Edna dos Santos-Duisenberg. Graças em grande parte ao empenho de Edna e ao entusiasmo esclarecido do Ministro Gilberto Gil, tomou-se a decisão de estabelecer em Salvador da Bahia um Centro Internacional para a Economia Criativa. No desenho, concepção e planejamento do Centro, contou-se muito com a participação de Ana Carla Fonseca Reis e de sua associada Lala Deheinzelin, momento em que nossos caminhos finalmente se cruzaram e vim a conhecer o que Ana Carla vinha já realizando no Brasil, de onde eu me encontrava ausente há dez anos.

Narrei essa história para mostrar que minha aproximação com os problemas da economia criativa ocorreu sobretudo a partir do ângulo de sua capacidade de servir como instrumento de riqueza e desenvolvimento de povos que não dispõem com frequência de muitas outras condições propícias. Quando plenejávamos a reunião da UNCTAD em São Paulo, queríamos marcar sua celebração com um grande concerto com músicos e bandas da Jamaica, Cuba, Brasil, Senegal, Mali, de inúmeros outros países africanos e asiáticos. Não conseguimos infelizmente resolver o desafio do financiamento e patrocínio comercial e o concerto acabou não se realizando.

Se ele tivesse ocorrido, nossa intenção era de chamá-lo “A riqueza dos pobres”, a fim de mostrar precisamente que, em matéria de cultura e arte, os que chamamos de pobres – os músicos de jazz de New Orleans e do Mississipi, os cantores de “blues” da Georgia e do Alabama, os “guajiros” cubanos inventores do “son”, os compositores dos morros cariocas, os Cartolas, Nelson Cavaquinhos, Carlos Cachaças, que vendiam sambas a dez mil reis para cantores do rádio – eram os verdadeiros milionários a esbanjar talento, a desperdiçar beleza em troca de uns tostões para sobreviverem e não serem obrigados a lavar automóveis, conforme aconteceu com Cartola até ser redescoberto.

Não se pense que o fenômeno é restrito à música popular. O panorama é universal: as cores deslumbrantes dos tecidos africanos, dos “panos da Costa”, como se dizia no Brasil de outrora, as tonalidades inesgotáveis dos saris indianos, as máscaras e esculturas do Mali, de Burkina, do Congo, do Gabão, as pinturas do Haiti, do sul da África, o cinema do Irã, a poesia dos cordeis ou dos poetas repentistas do Nordeste, ficaríamos a encher páginas aqui se buscássemos fazer o inventário da criatividade anônima dos povos ditos atrasados.

É essa diversidade das culturas e dos produtos que elas engendram que, desde tempos imemoriais, alimentou o comércio de sedas, damascos, brocados, incenso, perfumes, especiarias, entre Oriente e Ocidente, Sul e Norte. O que é inédito em nossos dias é a escala estonteante de multiplicação desses contactos e o aparecimento de um público de massa, de milhões de indivíduos com capacidade de compra, dispostos a pagar para assistir um concerto de cítara indiana ou de músicos tuaregues do deserto do Mali, comprando-lhes os discos editados por casas especializadas em “world music”.

A globalização, em outras palavras, expandiu em dimensão geométrica a demanda por variedade cultural. Quem, 60 ou 70 anos atrás, se interessaria pela música dos bardos da África Ocidental ou dos cantores sacros muçulmanos do Paquistão se não meia-dúzia de etno-musicólogos? Como a globalização também tende dialeticamente a espalhar por toda a parte a praga do que há de pior nos modismos culturais degradados dos Estados Unidos e do Ocidente, houve quem se fixasse apenas em tal tendência, esquecendo a outra, a da fome de diversidade num mundo que se afoga na mediocridade e no grotesco da televisão e do consumismo.

A relação ambígua, contraditória, da diversidade cultural com a economia globalizada oferece alguma analogia com tendência anterior, a da relação igualmente ambivalente da cultura e das artes com o surgimento de métodos industriais que permitiram multiplicar em massa as obras artísticas, por meio de processos reprodutivos como a fotografia. A rigor, tudo começa muito antes, quando a tipografia de Gutemberg põe fim à longa era do livro-pergaminho, privilégio de poucos. De modo análogo, a fotografia, o cinema, os discos, a televisão, os meios eletrônicos abalam o paradigma tradicional da obra de arte única, produto do gênio criador do artista, para contemplação ou enriquecimento espiritual dos “happy few” admitidos aos palácios dos Medici, à missa na Capela Sixtina, à execução das Paixões ou das Cantatas nas catedrais de Leipzig ou Dresde, ao público atingido pela companhia de teatro de Shakespeare.

À medida que se alarga o círculo de pessoas alcançadas pela obra de arte, um movimento similar faz com que a ênfase do conceito de cultura se desloque da produção de cultura para seu consumo, desfrute ou apreciação. Enquanto os produtos culturais eram sobretudo proporcionados por meio de representações ao vivo, como no teatro ou nos espetáculos dos jograis das feiras medievais, o vínculo entre sua produção e seu consumo era ainda bem visível. Isso muda radicalmente no momento em que idéias culturais passam a ser incorporadas em objetos reprodutíveis fornecidos a um mercado de massa disperso no espaço e no tempo. Tal foi o processo que conduziu à associação da cultura com as idéias de entretenimento, diversão e consumo de massa.

A mesma razão explica que o debate sociológico sobre a cultura alterne entre uma perspectiva de produção ou de consumo. Partindo do ângulo da criação, Walter Benjamin foi dos primeiros a explorar como a produção artística era moldada pelas condições tecnológicas existentes. Em seus escritos sobre fotografia, entre outros, ele encarou a produção em larga escala de cultura como tendência essencialmente positiva. Já seu contemporâneo e colega Adorno e, antes dele, Nietzsche, associaram a co-modificação da cultura com um processo destrutivo, frequentemente ligado à abordagem industrial ou mercadológica do consumo da cultura.

Muito da atual discussão sobre cultura e globalização, em especial o enfoque sobre o poder e a influência das gigantescas corporações globais de mídia, tem seguido Nietzsche e Adorno, mais do que Benjamin. Teme-se que, devido à maciça influência da TV, dos filmes, da mídia americanos ou ocidentais em geral e agora de uma Internet dominada pelos Estados Unidos, a globalização possa conduzir à uniformidade cultural, à perda de identidade e à adoção de modos de pensamento e vida, idéias, gostos e estilos totalmente estrangeiros a muitos povos. A consequência seria um empobrecimento em diversidade cultural cujas implicações seriam tão graves como as derivadas da destruição da biodiversidade.

A globalização possui, efetivamente, dimensão cultural fundamental, uma vez que ela não se resume à unificação, em escala planetária, dos mercados para o comércio, o investimento e as transações financeiras. Esses são, de fato, componentes importantes de um processo histórico muito mais amplo e abrangente, impulsionado pelas revoluções tecnológicas em telecomunicações e eletrônica. Seu efeito mais tangível é tornar as comunicações cada vez mais rápidas e baratas quase a cada mês que passa. Dois dos elementos cruciais dessa transformação são culturais por natureza : o caráter dos avanços em ciência e tecnologia, ambas produtos da cultura e seu resultado, que é de promover a transmissão de informações, conhecimento e idéias, ou seja, da essência da cultura.

Desse ponto de vista, é preciso reconhecer o incalculável potencial positivo da globalização para multiplicar e facilitar as possibilidades de intercâmbio e de interação entre diferentes culturas e civilizações. Afinal de contas, boa parte do progresso histórico nas ciências, nas artes e na cultura em geral ocorreu como resultado direto da transmissão intercultural. Se isso era verdade mesmo quando os contactos eram fragmentários e esporádicos, não seria razoável esperar retornos muito mais altos agora que o processo de trocas entre culturas está recebendo um poderoso impulso da globalização?

É dessa complexa trama entre economia e cultura, entre globalização e diversidade, entre criatividade gratuita e utilidade comercial que trata o estudo de Ana Carla. Chama a atenção que ela tenha chegado a essa etapa seguindo caminho de certo modo surpreendente. Poucos anos atrás, em 2003 se não me engano, ela havia publicado “Marketing Cultural e Financiamento da Cultura”, com o subtítulo “Teoria e prática em um estudo internacional comparado” (Editora Thomson, São Paulo). O livro adotava enfoque eminentemente concreto e prático, procurando mostrar as diversas alternativas existentes nos países líderes em termos de financiamento das atividades culturais e de sua promoção e distribuição.

Basta percorrer com o olhar o índice desse trabalho para ter o interesse despertado pela sua enorme potencialidade em matéria de orientação utilitária para todos os que, de uma forma ou outra, trabalham com o mundo da cultura e da economia. Há, por exemplo, capítulos dedicados aos métodos de seleção de projetos, de avaliação dos resultados, de treinamento de pessoal habilitado e até, numa das passagens que achei mais originais, à grande participação possível para pequenas e micro empresas.

O que até certo ponto me surpreendeu foi que, após demonstrar sua faceta “matter of fact” ou “businesslike” (desculpem o inglês, mas é difícil evitar nessas matérias práticas o recurso ao idioma do país que um dos seus presidentes, Clavin Coolidge, assim definiu : “The business of the United States is business”) , a autora empreendesse vôo teórico muito mais desafiador com esta nova obra. “O Caleidoscópio da Cultura – Economia da cultura e desenvolvimento sustentável” é, como se pode perceber da abrangência do título, esforço de envergadura de asas muito mais ampla e generosa. Trata-se, em realidade, do estudo mais sistemático e completo que conheço em língua portuguesa sobre o universo em gestação da economia da cultura e da cultura da economia, aliás título de seu primeiro capítulo.
O caminho que se poderia talvez considerar mais usual teria sido partir de alguns conceitos básicos de caráter geral e descer gradualmente ao particular e específico. Ana Carla abriu caminho inverso porque, conforme deixa claro na introdução do livro anterior, sua trajetória pessoal nessa área foi sempre marcada por uma constante e inseparável interação entre reflexão e prática, pela unidade entre o pensamento teórico e sua transformação em resultados concretos, que fazem sentido do ponto de vista rigoroso de uma economia preocupada com custos financeiros e dividendos objetivos.

Dessa perspectiva, vale observar como, logo após discutir os grandes conceitos e definições que balizam o debate contemporâneo sobre “economia criativa”, “indústrias criativas”, “economia da cultura ou da criatividade” e seus possíveis conteúdos, ela não perde o pé nesse terreno especulativo em ebulição e imediatamente calça a narrativa com o capítulo seguinte, que sugestivamente se volta para “Os Números da cultura.”Creio que um dos aspectos que explicam a riqueza e valor da arquitetura interna da obra e de sua concretização é precisamente a feliz coincidência, na autora, de vivência pessoal do tema nas suas atividades profissionais, com a experiência provada no competitivo mundo das grandes transnacionais globalizadas e com uma acentuada vocação para a exploração das idéias, de análise de conceitos com rigor universitário.

Esta é uma área de bibliografia parca e insatisfatória, conforme a própria Ana Carla comenta na introdução do primeiro livro, ao confessar sua surpresa com a quase inexistente bibliografia no Brasil e ao notar como eram raros, mesmo no exterior, “os livros de referência com a solidez que eu buscava.”Nessa confissão esconde-se possivelmente o secreto projeto desde então da autora no sentido de esboçar, ela mesma, a obra sólida necessária, que toma corpo agora com este novo trabalho, a partir da sistematização do exame do problema em seus diversos níveis possíveis de generalização e de análise dos casos particulares.

A maioria dos escritos sobre este campo em proceso de desbravamento provém, com efeito, de gente da universidade, sobretudo dos países de língua inglesa, Reino Unido, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Irlanda onde já existem cursos estabelecidos de economia criativa. Outros títulos foram escritos de uma perspectiva essencialmente prática. O que é, de fato, extremamente raro é encontrar alguém que alie essa duas dimensões de forma harmoniosa e fecunda como no caso da autora.

Ademais, ela demonstra, entre outras coisas, que ser prática e terra-a-terra não exclui a sensibilidade para a linguagem clara e elegante, para uma cultura universal e com capacidade de escolher o melhor, para o conhecimento atualizado do que se está no momento fazendo nesse domínio, o que acentua o valor e a utilidade do que será um roteiro seguro para quem se aventure nos caminhos ainda pouco mapeados da economia criativa. Não tenho dúvidas de que Ana Carla Fonseca Reis conseguiu realizar o que buscava : uma obra sólida, que constituirá, a partir de agora, o marco inicial e a referência insubstituível para o estudo da economia criativa no Brasil.
Rubens Ricupero, 70, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco) - mpricupero@uol.com.br