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30/09/2001 - 17h10

Dólar onde está não é nada de mais

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SÉRGIO WERLANG
especial para a Folha de S.Paulo

Neste ano, uma soma inusitada de fatores adversos afetou a economia brasileira. Mesmo antes dos ataques terroristas de 11 de setembro havia dois motivos básicos para que o dólar tivesse alterado seu nível, que passou de R$ 1,95 ao fim de dezembro de 2000 para R$ 2,50/R$ 2,60 na primeira semana de setembro.

Primeiro, houve uma considerável deterioração da economia argentina, o que causou um aumento no risco de investimentos no Brasil por conta do chamado efeito contágio. Pode-se discutir que esse efeito é irracional, pois os impactos de uma queda da produção argentina em nosso país são pequenos. Mas o fato é que os mercados se comportam, ao menos no curto prazo, como se ele fosse bem real. Segundo, houve um racionamento de energia elétrica, fenômeno que não era observado desde a década de 60.

O racionamento teve como consequência uma queda na popularidade do presidente Fernando Henrique, o que elevou a probabilidade de eleição de um candidato não alinhado com as políticas econômicas deste governo.

Proteção e desvalorização

Isso causou uma desvalorização da moeda nacional, uma vez que mais brasileiros optaram por proteção, adquirindo ativos cambiais. Adicionalmente, embora não tão importante, pode-se dizer que o fato de a economia americana estar se recuperando mais lentamente do que o antecipado faria com que as exportações brasileiras crescessem menos.

Essa perda de valor do real diante do dólar causa um aumento na taxa de inflação. No Brasil, a principal razão para a maior inflação é o reajuste dos preços que são controlados pelo governo. Muitos desses, como os de energia elétrica, combustíveis, transportes e telecomunicações, são afetados pela desvalorização, direta ou indiretamente. Espera-se que a inflação deste ano fique entre 6% e 7%.

Por outro lado, na ata da última reunião do Copom (Comitê de Política Monetária do Banco Central, que determina a taxa de juros), o BC prevê que cerca de 30% dos preços são classificados como administrados pelo governo e terão aumento médio de 11%, portanto muito acima do restante dos preços, que não são controlados.

Metas de inflação e juros

Por sua vez, essa elevação da inflação, com uma política de metas, faz com que o BC tenha que aumentar os juros e tomar outras medidas para conter a atividade econômica (como elevar os recolhimentos compulsórios), de modo a evitar que a desvalorização gere repasses para os preços não-administrados. Dessa forma, na média, os preços da economia acabam por aumentar menos que as tarifas controladas pelo governo e mais próximos da meta de inflação (neste ano, 4% mais ou menos dois pontos percentuais e no ano que vem 3,5% mais ou menos dois pontos percentuais).

O Banco Central acabou por aumentar os juros de 15,25% ao ano, em março, para 19% ao ano em julho, patamar em que estão até agora. E a economia brasileira se desacelerou. O saldo comercial estava respondendo, como pode ser visto pelos números de agosto e setembro. Além disso, o governo resolveu se antecipar a possíveis agravamentos da situação econômica e tomou três medidas.

Primeiro, anunciou uma intervenção linear de cerca de US$ 1 bilhão por mês até o fim do ano, o que abastece o mercado de moeda estrangeira. Segundo, fechou um acordo com o FMI que prevê desembolsos de US$ 15 bilhões. Terceiro, aumentou, no bojo do acordo, a meta de superávit primário para 3,35% do PIB em 2001 e 3,5% do PIB em 2002.

Essa elevação da meta de superávit primário é particularmente importante, uma vez que está sendo feita em um ano pré-eleitoral, o que é um sinal muito forte da determinação do governo com a política de austeridade. Dessa maneira, se poderia esperar que os juros retomem uma trajetória de queda e que o dólar caia um pouco até o fim do ano. Ou seja, tudo apontava para uma situação difícil, o país cresceria bem menos que os 4% projetados no início do ano, mas a recuperação estava em vista, sem maiores percalços. Até que veio o ataque aos EUA.

Investimento e exportação

Tudo mudou. São três os principais impactos na economia brasileira. Primeiro, a economia dos EUA deverá se recuperar ainda mais lentamente, apesar das políticas anti-recessivas que estão sendo adotadas. Isso diminui o ritmo de crescimento das exportações brasileiras.

Segundo, isso também tem como consequência um aumento da chance de haver problemas na Argentina, o que, viu-se, acaba por contagiar a percepção de risco do Brasil. Terceiro, os investimentos arriscados no mundo (ações, países emergentes, "junk bonds" etc.) ficaram relativamente mais arriscados, o que fez com que a demanda por eles caísse.

Assim, deve-se esperar uma queda tanto nos financiamentos ao Brasil como às nossas empresas e também dos investimentos diretos. O câmbio tem novamente que responder, desvalorizando-se, uma vez que tudo aponta para a redução da oferta de dólares.

Para ter uma idéia quantitativa da magnitude da mudança, até agosto o investimento direto estava em cerca de US$ 2 bilhões por mês. Em setembro o Banco Central divulgou números parciais para setembro que mostram uma diminuição para pouco mais de US$ 1 bilhão por mês.

Tendo em vista que, neste ano, se a balança comercial fosse zero, haveria um déficit em transações correntes de cerca de US$ 25 bilhões, para que esse déficit fosse financiado de maneira bastante saudável por investimento direto seria necessária uma média de pouco mais de US$ 2 bilhões por mês. Portanto o quadro estava mostrando razoável conforto.

Imagine, no entanto, que haja uma queda do investimento direto para US$ 12 bilhões por ano (US$ 1 bilhão por mês). Segue-se que, para que o balanço em transações correntes seja financiado integralmente por investimento direto, seria necessária uma redução drástica desse déficit, em US$ 25 bilhões menos US$ 12 bilhões, resultando em US$ 13 bilhões.

Isso pode acontecer se o saldo da balança comercial aumentar e houver uma diminuição do déficit na conta de serviços (especialmente em transportes internacionais, que caem, pois é de esperar que a queda das importações seja superior à elevação das exportações e que haja redução grande do turismo de brasileiros no exterior). Mas não é diferença pequena _são US$ 13 bilhões.

O dólar do equilíbrio

A balança comercial brasileira já gerou saldos comerciais dessa magnitude, em 1992 e 1993. Portanto, é de esperar que, se a estrutura da economia brasileira não houvesse sido alterada de lá para cá, a taxa de câmbio deveria ter aproximadamente o mesmo nível de então. É claro que a economia brasileira mudou. A principal alteração se deu pelo fato de que é mais fácil importar.

Assim, pode-se esperar que, para gerar saldos comerciais como os de então, o câmbio deveria ser mais desvalorizado ainda. É possível calcular que, para manter o mesmo valor real de janeiro de 1992, o dólar deveria estar hoje entre R$ 2,45 e R$ 2,50, quando se usam como deflatores o IPC-DI da FGV e o IPC norte-americano.
Esses valores não podem ser tomados literalmente, mas indicam que é provável que a taxa de câmbio no nível de R$ 2,60/R$ 2,70 não esteja tão desvalorizada como aparenta. Nesse caso, não é de espantar que o dólar esteja resistindo a baixar muito mais.

Em resumo, não há nada de mais se o dólar ficar onde está. Isso é que é a virtude da flutuação cambial. Por meio da desvalorização cambial pode-se "exportar" um pouco do ajuste que a economia teria que sofrer se o câmbio fosse fixo. De fato, a taxa de juros real está em cerca de 12% ao ano, muito inferior ao que esteve em períodos turbulentos no passado.

Recomendações de política

O que o governo deve fazer? Quatro são as sugestões. Primeiro, para que a desvalorização cambial faça efeito na balança comercial, é preciso que o BC se mantenha atento para evitar os repasses, que apenas trariam inflação e forçariam desvalorizações adicionais para que a taxa de câmbio real fosse mantida.

Talvez a taxa de juros esteja muito alta agora, mas, mesmo que caia, terá que se manter em patamares elevados por um bom tempo. Segundo, para diminuir os impactos da desvalorização sobre a inflação, deveria ser efetuada uma desdolarização da economia, isto é, um esforço de todo o governo para desligar os reajustes de tarifas administradas do dólar. Para fazer isso, é fundamental entender um pouco como e por que as tarifas controladas são reajustadas de acordo com o dólar.

Desdolarizar

Há duas razões. Primeiro, alguns preços são diretamente afetados pelo dólar. Eles incluem: 1) o dos combustíveis, de acordo com a fórmula ora em vigor; 2) o repasse do preço da energia elétrica gerada por Itaipu, cerca de 25% do total do Brasil, que é corrigido pelo dólar; 3) o preço do gás que é transportado da Bolívia, que também é dolarizado, e os repasses desse preço ao da energia gerada pelas termoelétricas.

Segundo, há os preços que são reajustados periodicamente pelo IGP ou pelo IGP-M da FGV por contrato. Esses incluem a distribuição de energia elétrica em geral e os serviços de telecomunicações. Tanto o IGP como o IGP-M sofrem maior impacto com a desvalorização do dólar que os índices de preço ao consumidor.

Quanto à segunda causa, nada há a fazer com os contratos em andamento, mas os novos podem ser referenciados a um índice de preços ao consumidor, por exemplo, o IPC da FGV. Mas, em relação à primeira razão, muito pode ser feito. Com efeito, o governo poderia alterar a indexação de muitos desses contratos, incorrendo com o custo da proteção cambial quando não for possível outra solução. E, para isso, deveria aumentar o superávit fiscal.

E de dois em dois anos se poderia realizar uma análise para comparar o nível médio do câmbio em que houve a proteção e o nível médio então observado. Se houvesse uma discrepância grande, então um ajuste ao menos parcial das tarifas seria efetuado. A desvinculação dos preços internos do dólar é o que fará com que o câmbio flutuante tenha total eficácia.

Mais ajuste fiscal

Terceiro, porque as taxas de juros terão que ser mantidas em níveis mais altos do que antes da crise, é necessário compensar para que a relação dívida/PIB não suba. Daí, um aumento do superávit primário do setor público é de muita valia. Ele tem três efeitos positivos. Primeiro, permite que haja maior controle da demanda agregada sem que haja necessidade de aumento da taxa de juros.

Possibilitará uma queda da taxa de juros bem mais rápida que a que seria necessária na situação atual. Segundo, dependendo do nível de superávit a ser atingido, permitirá que a relação dívida/ PIB permaneça estável. Considere que: 1) o crescimento real do PIB deverá ficar em cerca de 2,5% ao ano em média até o fim de 2002; 2) a inflação média, próxima a 5%; e 3) a taxa de juros permanecerá nesse nível de 18% (ou seja, o Banco Central manterá o aperto monetário, mas haverá uma ligeira queda até o fim de 2002).

Nesse caso, é possível concluir que o superávit primário requerido é de cerca de 4,5% do PIB. Terceiro, como mencionado acima, caso haja uma desdolarização da economia, parte desse superávit precisaria ser usada para cobrir esses riscos cambiais.

Impostos e exportação

Quarto, e não menos relevante, é necessário um esforço sério para desonerar as exportações de tributos. A estrutura tributária altamente ineficiente faz com que o Brasil exporte produtos com muito imposto, quando no mundo isso é feito sem imposto.

Três são as fontes de impostos não-desoneráveis, que uma reforma tributária poderia resolver, mas que medidas tópicas também teriam sua eficácia. Primeiro em relação aos impostos cumulativos, o PIS/Pasep, a Cofins e a CPMF. Recentemente tive acesso a uma avaliação feita por uma grande empresa brasileira que mostrava que suas exportações eram encarecidas em cerca de 10% apenas por conta desses impostos incidentes em cascata (isto é, em várias etapas da produção).

Deve-se desonerar não apenas diretamente mas também a carga indireta, que vem pela aquisição de matérias-primas e produtos intermediários. Segundo, pela dificuldade de compensação do IPI.

Aqui o governo federal deveria simplesmente pagar em dinheiro o IPI não-compensado, ou permitir ampla compensação, não só com todos os impostos mas também com todas as contribuições federais (inclusive a que é devida ao INSS). Terceiro, o ICMS não-compensado. O problema aqui é o mesmo do caso do IPI, mas com o agravante de haver mais de um Estado envolvido sempre que há vendas interestaduais. Isso só será resolvido de vez com uma reforma tributária como a que estava sendo discutida no ano de 1999.

O ataque terrorista aos EUA mudou o mundo. É preciso entender que isso terá reflexos no Brasil. Em particular vai-se ter que conviver com taxas de câmbio muito mais desvalorizadas que no período pós-real ou mesmo que durante os dois anos subsequentes à flutuação do real. E isso é da essência do regime de câmbio flutuante: ele absorve boa parte dos choques negativos e "os exporta" para outros países. Nada há a fazer, a não ser aceitar esse fato e tentar amenizar seus efeitos inconvenientes. A lista de medidas governamentais que precisam ser tomadas é longa. Mas vamos passar por esta crise.

*Sérgio Werlang, professor da FGV-RJ, foi diretor de Política Econômica do Banco Central.

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