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21/07/2003 - 07h53

"Pós-graduação está esclerosada", diz antropólogo

ANTÔNIO GOIS
RAFAEL CARIELLO
Enviados especiais da Folha de S.Paulo a Recife

O debate sobre as cotas para negros, índios e estudantes da rede pública na graduação já é polêmico, mas há quem defenda que se vá ainda além. O antropólogo José Jorge de Carvalho, autor da proposta de cotas aprovada no mês passado na UnB (Universidade de Brasília), defende também que o critério racial seja levado em conta na pós-graduação.

Para ele, o diagnóstico da pós é ainda mais claro quanto à necessidade de aumentar o número de negros. Não se trata apenas de corrigir injustiças sociais, mas também de estimular a diversidade dos temas pesquisados pela ciência brasileira.

"A pós-graduação brasileira está hoje esclerosada pelo excesso de homogeneidade. Não há ninguém enfrentando ninguém, ninguém contestando ninguém. A entrada de mais negros e índios no sistema forçaria os programas a ampliarem seu leque de temas de conhecimento, incluindo assuntos de interesse mais direto dos negros e índios", diz.

Para ele, a ciência brasileira escolheu imitar um modelo europeu e deu as costas para os negros e os índios. Ele cita como exemplo o fato de haver apenas um negro entre os 61 pesquisadores entrevistados no livro comemorativo dos 50 anos da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).

"A academia é uma reunião de brancos. Incluir os negros e índios não é um problema de ciência, mas de consciência. É do interesse da ciência brasileira desenvolver mais temas que digam respeito aos negros e aos índios", afirma ele, que deu entrevista à Folha na semana passada, após participar da 55ª Reunião Anual da SBPC, em Recife.

Folha - O senhor defende cotas para negros e índios na graduação e também na pós. Por quê?

José Jorge de Carvalho
- Na graduação, a cota é necessária porque ela é cega. Há um passivo de muito tempo, e é preciso colocar um contingente de negros e índios no ensino superior. O único modo de fazer isso rapidamente é com cotas, porque as outras alternativas são soluções apenas para alguns gatos pingados.

Trabalhar com pré-vestibulares é beneficiar alguns gatos pingados. Na escola pública também só passariam alguns gatos pingados. A única garantia de que eu vou colocar esse contingente de estudantes na graduação é implementando cotas.

Folha - Mas por que defender a cota também na pós-graduação?

Carvalho
- A pós-graduação brasileira está hoje esclerosada pelo excesso de homogeneidade. Há muito tempo que o sistema apenas reproduz as mesmas redes que sempre estiveram na pós.
É evidente que, num sistema assim, a vigilância baixa. Não há ninguém enfrentando ninguém, ninguém contestando ninguém. Todo mundo que entra no sistema era ligado àquela rede e não vai brigar com outro que já está lá.

Parece uma família homogênea demais. É um professor da pós-graduação que escolhe um candidato para seguir a mesma linha de pesquisa dele. Já está tudo muito marcado.

Folha - Mas, na pós, até mais do que no caso da graduação, a seleção acadêmica não deveria levar em conta apenas o mérito?

Carvalho
- Na graduação, eu defendo um sistema de cotas. Na pós, o sistema de seleção não é de competência, mas de preferência. Às vezes, você tem apenas uma vaga e três candidatos disputando. Você tem que preferir alguém. Esse sistema de preferência sempre existiu porque toda a pós-graduação está montada em cima de linhas de pesquisa.

Folha - Por que isso prejudicaria, especificamente, negros e índios?

Carvalho
- Pode acontecer perfeitamente que um jovem muito talentoso e negro não entre na pós-graduação porque não tem nenhum professor que trabalhe a linha de pesquisa que ele quer seguir. E, muitas vezes, ele quer estudar temas que não existem porque nenhum dos professores é negro.

Às vezes, ele está interessado em assuntos que os outros professores já excluíram como tema de conhecimento e ele está alertando que gostaria de estudar aquilo. Como não tem nenhum professor para orientá-lo, ele fica de fora. Então, a pós-graduação não é meritocrática apenas.

Às vezes, você tem três alunos brilhantes querendo entrar numa pós-graduação numa área que tem duas vagas. Um brilhante vai ficar de fora. O tema é controlado pela rede de pesquisadores.

Folha - A pós-graduação brasileira não perderia em qualidade caso passasse a escolher candidatos por critérios raciais?

Carvalho
- Quando falo em preferência para negros, é porque isso forçaria os programas de pós-graduação a ampliar seu leque de temas de conhecimento. Com isso, você vai energizar e renovar as linhas de pensamento. Na literatura, nas artes, na história ou na psicologia, por exemplo.

Na psicologia, às vezes utilizamos teorias que foram acumuladas em países de homogeneidade étnica, que falam de uma coisa universal, e você traz esse conhecimento para o Brasil sem levar em conta o lugar dos negros e dos índios na nossa sociedade.

Na área de medicina, há uma queixa do movimento negro de que há poucas pesquisas sobre doenças que afetam mais os negros.

Folha - É necessário ser negro ou índio para estudar temas de interesse desses grupos? O senhor, por exemplo, é branco, mas estuda temas relacionados a esses grupos.

Carvalho
- Só que eu não tenho a mesma experiência de vida que um negro ou um índio, e isso é muito importante na hora de escolher os temas de interesse de um estudante da pós-graduação.

O problema é que temos, no Brasil, uma ciência que se pauta no eurocentrismo e que deu as costas a negros e índios.

Escolher negros e índios para participarem da pós-graduação é uma decisão de conhecimento, não apenas um mecanismo para reparar injustiças históricas. São esses negros e índios que ajudarão a desenvolver linhas de pesquisas do interesse de uma parcela significativa da população.

Recentemente, dei uma folheada no livro dos 50 anos da SBPC ["Cientistas do Brasil"], com entrevistas com 61 pesquisadores. Apenas um deles, o geógrafo Milton Santos, era negro. E ele já é falecido. A academia é uma reunião de brancos. Não é um problema de ciência, mas de consciência.

Folha - Por que o senhor decidiu propor cotas na UnB?

Carvalho
- Presenciei uma situação de racismo na UnB de modo muito idiossincrático. Apresentei minha proposta em novembro de 1999. Um aluno meu que era negro [Arivaldo Alves] conseguiu entrar no doutorado de antropologia da UnB. Nunca tinha entrado um negro no doutorado da universidade em 25 anos.

No primeiro semestre, ele ficou reprovado numa disciplina obrigatória em circunstâncias que depois fomos descobrir que não eram corretas, e os professores foram obrigados a mudar a nota dele. Aquilo foi alarmante. Era um absurdo a reprovação dele porque ele era brilhante.

Como ele tinha uma bolsa do CNPq e essa era matéria obrigatória, caso fosse reprovado, ele teria que voltar para casa fracassado. Eu e minha mulher [que também é professora da UnB] lutamos o tempo todo para ele não desistir.

Folha - Como a academia se posicionou com relação a esse caso?

Carvalho
- Quando o negro está na rua como empregada doméstica ou lavador de carro, você é até simpático com ele. Mas, quando ele está mais perto de entrar nessas redes, a coisa muda. A corporação se fechou para proteger o caso e silenciá-lo.

Foi uma longa briga. Em 1999, ele teve que contratar até advogado. Conseguimos vencer e, neste ano, ele foi aprovado no doutorado com louvor.

Folha - Daí surgiu a idéia das cotas?

Carvalho
- Sim. Se era tão difícil manter um aluno no doutorado, então vamos propor que entrem centenas e ver se ficam alguns.

Folha - E qual foi a primeira reação da universidade?

Carvalho
- Em novembro de 1999, apresentamos a proposta. Os alunos sempre se mobilizaram.
Fizemos vários debates e eles compareciam, mesmo para discordar. Já os professores nem queriam debater.

Folha - A conferência internacional sobre racismo, que ocorreu em 2001 em Durban (África do Sul), não contribuiu para tornar públicas essas propostas?

Carvalho
- Durban, sem dúvida, pôs isso na rua. A universidade tinha silenciado a realidade havia muitos anos. Os jornalistas tiveram que fazer perguntas ao Ipea, e não à universidade. A academia é muito racista. Ela quer o negro como objeto, não como sujeito.

Folha - Quais as principais diferenças do projeto da UnB para o da Uerj?

Carvalho
- Eu acho nosso projeto mais maduro porque ele foi pensado como um plano de metas. Na Uerj, as cotas aconteceram por decreto. O governo determinou, de cima para baixo, que a universidade reservasse 40% das vagas e ponto final. Nós reservamos 20% das vagas. Acho que é um número mais realista e pedagogicamente responsável.

Numa turma de 40 alunos, oito serão negros. Se um professor for hostil, o aluno terá colegas que o ajudarão a denunciá-lo. Se a porcentagem de cotas for muito pequena, ela não terá impacto. Se for grande demais, você não terá condições de absorver esses alunos.

Folha - Qual critério vocês utilizaram para definir quem é negro?

Carvalho
- O da autodeclaração. Não há outro possível. Sei que pessoas podem se declarar negras só para entrar pelas cotas, mas não há outra solução. A única resposta à esperteza deve ser o constrangimento moral. Mas não vamos partir do ponto de considerar que todo mundo é desonesto.

Esse critério está em acordos internacionais que o Brasil assinou e que garantem o direito de a pessoa se autodeclarar.

Folha - Os Estados Unidos adotam ações afirmativas desde a década de 60. Por que demoramos tanto para fazer o mesmo?

Carvalho
- Há um século de silêncio sobre esse tema na nossa academia. Desde a criação das primeiras universidades, perdemos sucessivamente a oportunidade de incluir os negros no sistema apenas com uma canetada.

Isso poderia ser feito, com bem menos problemas do que hoje, na criação da USP, das federais do Paraná ou do Rio de Janeiro e na criação da UnB. De lá para cá, os mecanismos de exclusão foram cada vez mais aperfeiçoados.

Folha - A discussão sobre o elitismo da universidade passa também pela discussão sobre a cobrança de mensalidades em universidades públicas para os que podem pagar. O senhor é a favor?

Carvalho
- Acho que essa questão só pode ser respondida dentro do contexto de uma discussão sobre a tributação. Num país que dá enormes isenções fiscais, será que a cobrança de mensalidades seria a prioridade das contas do Estado como um todo?

O Brasil contingencia recursos monumentais para o pagamento da dívida externa ou por causa de isenção fiscal para grandes empresas. Trata-se também de uma questão moral. Que Estado é esse que quer cobrar das universidades e não cobra do grande capital?
 

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