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04/03/2006
-
16h31
GABRIEL COHN
Especial para a Folha de S.Paulo
Há momentos em que as universidades parecem empenhadas em exibir à sociedade a sua pior face. Quando falo de universidades estou me referindo apenas às sérias, sem preocupar-me neste momento com esses shopping centers com escolas anexas que brotam como cogumelos por todos os cantos.
Tomemos três exemplos recentes: as universidades públicas federais encerraram há pouco uma greve que consumiu mais de cem dias de aulas (pois é de aulas que se trata; as atividades de pesquisa não são simplesmente paralisadas em greve nenhuma), mais uma vez deixando a imagem de que nelas não se faz grande coisa. A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo se vê às voltas com um doloroso processo de reorganização interna sob fortes restrições financeiras, que ameaça a continuidade do padrão que a identifica.
Um centro de elite, a nova Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, é sacudida pelos efeitos da demissão sumária de um docente de excepcional valor, Marcelo Neves.
O cerne do sistema
Não importam aqui os pormenores de cada caso. Importa que eles atingem o cerne do sistema universitário: no setor público, no segmento do setor privado dirigido ao público "classe A" e, no caso da PUC, naquilo que, na terminologia consagrada por interessante debate nos anos 80, alguns chamariam de "público não-estatal".
Será que em todos os seus setores principais a universidade está fazendo água? Por um lado, exibe-se a contínua turbulência interna no sistema federal de ensino superior, que se traduz no uso compulsivo de um instrumento de reivindicação, a greve, que, ao ser posto em marcha, esconde todas as preocupações dos envolvidos que não sejam salariais e de carreira, imprimindo na universidade pública a imagem de corporativismo estéril injusta, diga-se com toda a ênfase, pois é nela que é gerada a esmagadora maioria da pesquisa no país e se formam quadros importantes.
Por outro, manifesta-se como escolas privadas de elite, que em escala crescente disputam os melhores estudantes com a universidade pública (tarefa facilitada pelas tendências que, em nome do caráter "elitista" desta, descuram a questão da excelência e a querem ver mais como voltada para a inclusão e a ascensão social), comportam-se como empresas fornecedoras de serviços especializados a uma clientela seleta.
Por fim, corre risco um tipo de escola que desenvolveu um padrão próprio de formação e pesquisa ao longo de décadas, com momentos dos mais elevados e significativos, como a acolhida que a PUC paulista ofereceu em plena ditadura à então proscrita reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Saberá a PUC manter-se íntegra sob a pressão de entidades financeiras que saberão cobrar, não se sabe até que ponto (sabe-se apenas que sua direção lutará bravamente para que ela não se desfigure), formas de gestão que poderiam extravasar para o próprio modo de funcionamento acadêmico, talvez até acentuando tendências já existentes?
Relação difícil
Tudo isso aponta para um problema grave e fundo, que não vem de hoje. Está em causa o modo de inserção da universidade na sociedade. E isso na sua versão mais radical, que pode ser expressa nos seguintes termos: a universidade ainda não logrou ser vista pelo conjunto da sociedade como algo seu, como uma instituição da sociedade.
Há sempre uma nota de estranheza, senão de estranhamento, nessa relação difícil, que se verifica para qualquer tipo de universidade; por razões diferentes, talvez, afeta tanto as públicas quanto as privadas. Em alguns casos, isso parece trazer a marca da própria origem de uma universidade em situações e contextos específicos.
Tomemos a USP, que às vezes se comporta como se a sua fundação, por iniciativa de setores das elites paulistas derrotadas em 1930, fosse uma espécie de estigma, a comprometê-la para sempre com uma vocação exclusivista; posição que tem resposta num sentimento ambíguo, de amor-ódio que apreciável parcela da população parece ter por ela e também na chocante indiferença dos seus ex-alunos pela sua sorte.
Ou a PUC, que passou por momentos em que a inserção na sociedade chegava perto de ser interpretada como uma abolição das fronteiras entre a universidade e a sociedade mais ampla, em especial os mais pobres e mais oprimidos.
A referência às fronteiras deve ser levada a sério. Pois é mesmo disso que se trata, quando se vai ao paradoxo que marca a questão da inserção na sociedade de uma instituição muito específica como a universidade (na realidade isso não é exclusivo dela: aplica-se em algum grau a todas as instituições).
Consiste esse paradoxo em que a universidade, como forma de organizar valores e objetivos sociais, pessoas e equipamentos num conjunto peculiar, se insere melhor e mais profundamente na sociedade exatamente quando sabe manter e fazer operar as fronteiras que asseguram a sua identidade e, sobretudo, a sua autonomia.
Entre dois perigos
E aqui chegamos ao fundo do problema: autonomia. A universidade caminha sempre tensa entre dois perigos. Por um lado, corre o risco de simplesmente fechar-se ao entorno e caminhar não para a autonomia, mas para a autarquia, como se pudesse bastar-se a si mesma; por outro, está sujeita a dissolver-se no entorno, em nome da exigência de simplesmente prestar serviços a este ou aquele interesse social ou, então (numa expressão da má consciência que não raro afeta a universidade pública), em nome do pagamento da sua dívida com a sociedade que a mantém.
Mas, tomando-se este último caso, mantém para quê? Certamente não será para converter-se numa fortaleza cerrada nem numa massa gelatinosa. Espera-se dela (embora de maneira vaga e mesmo confusa) que saiba assegurar as condições para fazer o que lhe é próprio: formar cidadãos e quadros profissionais de elevada qualidade e produzir conhecimento em nível de excelência segundo padrões internacionais.
É nesse ponto que entra a questão decisiva da autonomia, no sentido preciso que o termo assume nesse contexto: como capacidade da universidade de manter a iniciativa de detectar tendências e necessidades no interior da sociedade mais ampla e --esse é o ponto-- convertê-las em questões relevantes na sua área própria de atuação, na formação e na pesquisa mais exigentes.
A universidade --pelo menos a universidade pública, que é decisiva sob todos os aspectos-- completará o seu problemático trajeto de inserção na sociedade e receberá dela o reconhecimento correspondente quando souber exercer e proclamar sua autonomia nesses termos. Nem empresarial simplesmente nem meramente edificante, muito menos beneficente: mas produtora de conhecimento ao qual ninguém terá acesso sem ela e formadora dos cidadãos que saberão usá-lo publicamente. Nisso consiste sua outra face, não sombria, mas radiante.
Gabriel Cohn é sociólogo e professor no departamento de ciência política da USP, autor de "Crítica e Resignação - Max Weber e a Teoria Social" (Martins Fontes). Preside a Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais).
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Há momentos em que as universidades parecem empenhadas em exibir à sociedade a sua pior face. Quando falo de universidades estou me referindo apenas às sérias, sem preocupar-me neste momento com esses shopping centers com escolas anexas que brotam como cogumelos por todos os cantos.
Tomemos três exemplos recentes: as universidades públicas federais encerraram há pouco uma greve que consumiu mais de cem dias de aulas (pois é de aulas que se trata; as atividades de pesquisa não são simplesmente paralisadas em greve nenhuma), mais uma vez deixando a imagem de que nelas não se faz grande coisa. A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo se vê às voltas com um doloroso processo de reorganização interna sob fortes restrições financeiras, que ameaça a continuidade do padrão que a identifica.
Um centro de elite, a nova Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, é sacudida pelos efeitos da demissão sumária de um docente de excepcional valor, Marcelo Neves.
O cerne do sistema
Não importam aqui os pormenores de cada caso. Importa que eles atingem o cerne do sistema universitário: no setor público, no segmento do setor privado dirigido ao público "classe A" e, no caso da PUC, naquilo que, na terminologia consagrada por interessante debate nos anos 80, alguns chamariam de "público não-estatal".
Será que em todos os seus setores principais a universidade está fazendo água? Por um lado, exibe-se a contínua turbulência interna no sistema federal de ensino superior, que se traduz no uso compulsivo de um instrumento de reivindicação, a greve, que, ao ser posto em marcha, esconde todas as preocupações dos envolvidos que não sejam salariais e de carreira, imprimindo na universidade pública a imagem de corporativismo estéril injusta, diga-se com toda a ênfase, pois é nela que é gerada a esmagadora maioria da pesquisa no país e se formam quadros importantes.
Por outro, manifesta-se como escolas privadas de elite, que em escala crescente disputam os melhores estudantes com a universidade pública (tarefa facilitada pelas tendências que, em nome do caráter "elitista" desta, descuram a questão da excelência e a querem ver mais como voltada para a inclusão e a ascensão social), comportam-se como empresas fornecedoras de serviços especializados a uma clientela seleta.
Por fim, corre risco um tipo de escola que desenvolveu um padrão próprio de formação e pesquisa ao longo de décadas, com momentos dos mais elevados e significativos, como a acolhida que a PUC paulista ofereceu em plena ditadura à então proscrita reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Saberá a PUC manter-se íntegra sob a pressão de entidades financeiras que saberão cobrar, não se sabe até que ponto (sabe-se apenas que sua direção lutará bravamente para que ela não se desfigure), formas de gestão que poderiam extravasar para o próprio modo de funcionamento acadêmico, talvez até acentuando tendências já existentes?
Relação difícil
Tudo isso aponta para um problema grave e fundo, que não vem de hoje. Está em causa o modo de inserção da universidade na sociedade. E isso na sua versão mais radical, que pode ser expressa nos seguintes termos: a universidade ainda não logrou ser vista pelo conjunto da sociedade como algo seu, como uma instituição da sociedade.
Há sempre uma nota de estranheza, senão de estranhamento, nessa relação difícil, que se verifica para qualquer tipo de universidade; por razões diferentes, talvez, afeta tanto as públicas quanto as privadas. Em alguns casos, isso parece trazer a marca da própria origem de uma universidade em situações e contextos específicos.
Tomemos a USP, que às vezes se comporta como se a sua fundação, por iniciativa de setores das elites paulistas derrotadas em 1930, fosse uma espécie de estigma, a comprometê-la para sempre com uma vocação exclusivista; posição que tem resposta num sentimento ambíguo, de amor-ódio que apreciável parcela da população parece ter por ela e também na chocante indiferença dos seus ex-alunos pela sua sorte.
Ou a PUC, que passou por momentos em que a inserção na sociedade chegava perto de ser interpretada como uma abolição das fronteiras entre a universidade e a sociedade mais ampla, em especial os mais pobres e mais oprimidos.
A referência às fronteiras deve ser levada a sério. Pois é mesmo disso que se trata, quando se vai ao paradoxo que marca a questão da inserção na sociedade de uma instituição muito específica como a universidade (na realidade isso não é exclusivo dela: aplica-se em algum grau a todas as instituições).
Consiste esse paradoxo em que a universidade, como forma de organizar valores e objetivos sociais, pessoas e equipamentos num conjunto peculiar, se insere melhor e mais profundamente na sociedade exatamente quando sabe manter e fazer operar as fronteiras que asseguram a sua identidade e, sobretudo, a sua autonomia.
Entre dois perigos
E aqui chegamos ao fundo do problema: autonomia. A universidade caminha sempre tensa entre dois perigos. Por um lado, corre o risco de simplesmente fechar-se ao entorno e caminhar não para a autonomia, mas para a autarquia, como se pudesse bastar-se a si mesma; por outro, está sujeita a dissolver-se no entorno, em nome da exigência de simplesmente prestar serviços a este ou aquele interesse social ou, então (numa expressão da má consciência que não raro afeta a universidade pública), em nome do pagamento da sua dívida com a sociedade que a mantém.
Mas, tomando-se este último caso, mantém para quê? Certamente não será para converter-se numa fortaleza cerrada nem numa massa gelatinosa. Espera-se dela (embora de maneira vaga e mesmo confusa) que saiba assegurar as condições para fazer o que lhe é próprio: formar cidadãos e quadros profissionais de elevada qualidade e produzir conhecimento em nível de excelência segundo padrões internacionais.
É nesse ponto que entra a questão decisiva da autonomia, no sentido preciso que o termo assume nesse contexto: como capacidade da universidade de manter a iniciativa de detectar tendências e necessidades no interior da sociedade mais ampla e --esse é o ponto-- convertê-las em questões relevantes na sua área própria de atuação, na formação e na pesquisa mais exigentes.
A universidade --pelo menos a universidade pública, que é decisiva sob todos os aspectos-- completará o seu problemático trajeto de inserção na sociedade e receberá dela o reconhecimento correspondente quando souber exercer e proclamar sua autonomia nesses termos. Nem empresarial simplesmente nem meramente edificante, muito menos beneficente: mas produtora de conhecimento ao qual ninguém terá acesso sem ela e formadora dos cidadãos que saberão usá-lo publicamente. Nisso consiste sua outra face, não sombria, mas radiante.
Gabriel Cohn é sociólogo e professor no departamento de ciência política da USP, autor de "Crítica e Resignação - Max Weber e a Teoria Social" (Martins Fontes). Preside a Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais).
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