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25/06/2001 - 17h52

'Pearl Harbor' deixa a História em segundo plano

JOÃO BONTURI*
especial para a Folha Online

Divulgado como um épico, o filme "Pearl Harbor" não mostra a História com letra maiúscula. O "The New York Times", o classifica como "bang-and-boom action picture", um filme de ação com pancadaria e explosões.

Paralelamente ao triângulo amoroso formado pelos personagens Rafe McCawley (Ben Affleck), Danny Walker (Josh Hartnett) e Evelyn Johnson (Kate Beckinsale), é mostrada superficialmente a história real da Segunda Guerra Mundial e a entrada dos Estados Unidos no conflito ao lado dos Aliados. Além disso, o ufanismo característico do cinema dos EUA foi mais uma vez exagerado, com a colocação dos bonzinhos e inocentes norte-americanos lutando contra os malvados japoneses.

AP
No filme, a História ficou restrita aos flashes dos jornais da tela, que eram documentários de exibição obrigatória nos cinemas, antes dos filmes principais.

Figuras chaves da Segunda Guerra Mundial, como o ditador alemão, Adolf Hitler, e o primeiro ministro da Inglaterra, Winston Churchill, parecem quadros de museu. As participações do presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt (Jon Voight), e do comandante japonês, almirante Yamamoto (Mako), são colagens de manchetes com frases de efeito.

Até mesmo o preconceito racial nas Forças Armadas dos EUA foi mascarado. Dorie Miller (Cuba Gooding Jr.), um lutador de boxe, lotado como cozinheiro na Marinha, foi um dos primeiros negros condecorados pelo governo norte-americano; ele salvou a vida de um oficial branco, e derrubou dois aviões japoneses com uma metralhadora anti-aérea, para o uso da qual não era habilitado. Salvo exceções, os negros eram designados para funções internas de pouca dignidade nas Forças Armadas. Na vida real ele era mal-visto, mas no filme, o roteirista descambou para o "politicamente correto" e nem tocou no problema.

A vantagem do filme para quem pretende usá-lo como ferramenta de estudo fica por conta da boa reconstituição de época. Destaca-se a presença do rádio, na cena em que Evelyn fica na ante-sala das transmissões radiofônicas durante a operação Doolittle; do telégrafo, quando o almirante americano, depois do bombardeio de Pearl Harbour, recebe a notícia de que os japoneses poderiam bombardeá-la. Salienta-se também o som das big bands, que rola nas cenas mais hilárias como aquela em que as enfermeiras dão injeções nas nádegas dos soldados.

Mas é importante não se deixar influenciar pela História mal contada. "Pearl Harbor" é uma boa diversão, mas apresenta uma visão maniqueísta e hipócrita da guerra: os americanos são inocentes e bonzinhos, e os japoneses, sanguinários e cruéis. Veja abaixo alguns aspectos históricos que foram deixados de lado:

  • O presidente Roosevelt, na mensagem de declaração de guerra, enviada ao Congresso dos EUA, afirma que: "Ontem, 7 de dezembro de 1941 - uma data que viverá na infâmia - os EUA foram súbita e deliberadamente atacados pelas forças navais e aéreas do Império do Japão".

    Os americanos, porém, não podem alegar que foram totalmente surpreendidos pelo ataque, já que desde o verão de 1941 sabiam como decifrar o Magic, código secreto dos japoneses através do qual eram enviadas mensagens telegráficas aos diplomatas, dispondo assim de meios para verificar a veracidade das afirmações, e ao mesmo tempo podiam evitar um conflito premeditado com os nipônicos. Os jornais de tela japoneses da segunda metade de 1941 eram abertamente antiamericanos; e nos EUA, as Atualidades Paramount não eram brandas contra o Império do Sol.

  • O filme insiste que o corte do fornecimento de petróleo foi a principal causa do ataque japonês aos EUA. De fato, 75% do petróleo consumido pelo Japão era importado dos EUA, bem como aproximadamente 70% do ferro e maquinários. Além disso, os créditos japoneses nos EUA também foram congelados, mas não há qualquer menção ao principal problema, que era o choque de interesses entre japoneses, norte-americanos, franceses e ingleses pela expansão imperialista no continente asiático.

    O corte do petróleo promovido pelos EUA imobilizaria não só a indústria, mas também a máquina de guerra japonesa, em ação desde o início dos anos 30 na conquista de novas terras que tivessem matéria-prima e mão-de-obra barata. Os EUA tentaram deter com o bloqueio econômico a expansão nipônica que ameaçava terras norte-americanas na Ásia, como as Filipinas, e a própria expansão do comércio dos EUA na Ásia.

    Os japoneses iniciaram essa busca após a crise econômica de 1929, com uma invasão na China, em setembro de 1931. Em 1932, a península da Mandchúria foi transformada no Manchukuo, um Estado conduzido pelo imperador fantoche Pu-Yi, controlado por trás pelos japoneses. Essa patética figura foi retratada pelo cineasta Bernardo Bertolucci em "O Último Imperador".

    Em 1937, os japoneses ampliaram o seu raio de ação. Para abafar a reação chinesa ocuparam todo o leste, inclusive a capital Pequim, e as cidades de Nankin e Shangai. Nessa ocasião, os americanos venderam armas para os dois lados, na base do "cash and carry", ou seja, pagamento à vista, e transporte por conta e risco do comprador. Os americanos não censuraram a atitude imperialista dos japoneses.

    Por sua vez, desde 1898, os americanos dominavam as Filipinas, conjunto de ilhas localizadas ao norte de Taiwan, controlada pelo Japão. As Filipinas eram a ponta de lança do comércio americano na Ásia.

    Em 1940, com a ajuda de Hitler, os japoneses obtiveram da França o norte do Vietnã, então colônia francesa; no caminho, aproveitaram para ocupar Hong-Kong, então colônia inglesa. Dessa forma, aproximavam-se perigosamente da área controlada pelos EUA. No mesmo ano, os japoneses assinaram com a Itália e a Alemanha o Pacto Tripartite, que formou o Eixo Roma-Berlin-Tóquio, no qual italianos e alemães prometiam ajuda militar ao Japão, caso alguma potência o atacasse; a URSS foi excluída dessa possibilidade por um pacto de não agressão. Dessa maneira, a única potência da lista eram os EUA. Diante dessa ameaça, os norte-americanos tentaram deter a escalada nipônica através do bloqueio econômico.

  • No filme, o presidente Roosevelt afirma que "enquanto produzíamos geladeiras, eles fabricavam armas", dando a impressão de que os americanos estavam com a indústria bélica paralisada.

    Mais uma vez, a afirmação é usada pelo filme de maneira enganosa, pois desde novembro de 1939, o Congresso dos EUA autorizou a venda de armas, munições e outros bens para a França e Inglaterra, na base do "cash and carry". Em 1941, pela Lei de Crédito e Arrendamento, o Congresso dos EUA permitiu que Roosevelt enviasse armas para os franceses e ingleses dispensando o "cash and carry". Portanto, a indústria bélica estava a pleno vapor, só que o governo dos EUA não era o maior cliente.

    Versão japonesa

    Puxando a brasa para a sardinha dos americanos, "Pearl Harbour" é mais uma patriotada do cinema. Porém, o filme ultrapassou esse limite e avançou para a hipocrisia, para mostrar que no século 21, superar os US$ 140 milhões gastos na produção do filme é mais importante do que o retrato do passado.

    Na versão exibida no Ocidente, "Pearl Harbor" estigmatiza os japoneses como vilões, mas a Walt Disney Company fez uma edição diferente para exibir no Japão, que é o segundo maior mercado mundial de cinema.

    O filme, que só estreará lá em julho, está sendo promovido da mesma maneira que "Titanic" e "Armageddon", com destaque para a história de amor e o drama humano, deixando os efeitos especiais em segundo plano.

    Na versão japonesa, uma das mudanças está na briga de cães, quando um dos personagens principais descreve os pilotos japoneses como "japs", em lugar de "japs suckers" (japoneses idiotas); as falas em japonês do almirante que planejou o ataque serão dubladas novamente para serem melhor ouvidas pelo público nipônico.

    * João Bonturi é professor de história do colégio Singular e do cursinho Singular-Anglo e escreve a partir de hoje a coluna Tudo é história no Fovest Online.
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