ONGs ambientais ricas e estrangeiras atropelam locais

Fundadores do Ipê afirmam que organizações internacionais querem dizer "o que é melhor" para os países

PATRÍCIA TRUDES DA VEIGA
CÁSSIO AOQUI
ANDRÉ LOBATO
DA FOLHA DE S.PAULO

Muitas vezes apressadas em obter resultados rápidos para justificar os recursos levantados, as grandes, ricas e poderosas ONGs estrangeiras "atropelam" na hora de implementar projetos ambientais no Brasil. É o que avaliam os educadores socioambientais e fundadores da terceira maior ONG ambiental brasileira, o Ipê (Instituto de Pesquisa Ecológicas), Claudio, 61, e Suzana Padua, 58. Em dezembro passado, o casal tornou-se a primeira liderança ambiental a vencer o Prêmio Empreendedor Social, realizado pela Folha e pela Fundação Schwab.

Sem mencionar nomes, eles ressaltam as diferenças de atuação entre as ONGs internacionais -ricas- e as locais. Por falta de estrutura, dizem, as ricas sublocam organizações menores, mas a forma de fazer vem "de cima para baixo".

"Chegam com o projeto pronto, dizendo 'sei o que é melhor para vocês'", constata Claudio. "Leva tempo para construir confiança. Às vezes, elas não têm tempo, têm de mostrar resultado, porque coletaram verba que precisa ser gasta de determinada maneira", completa Suzana.

Para o casal, que classifica os rumos da conferência de Copenhague de "inadmissível", as políticas ambientais internacionais são criadas "no mundo das agências multilaterais junto com quem tem assento lá, as organizações enormes".

Defensores da biodiversidade e do socioambiental no centro do desenvolvimento econômico e do mundo empresarial, criticam a mentalidade "velha" do governo Lula nessa área e a falta de agenda do empresariado brasileiro no tema. "Muitos [empresários] ainda olham pelo marketing, pela imagem. Mas o Brasil está mudando."

FOLHA - Como vocês veem a evolução do movimento ambientalista desde quando o Ipê surgiu, na época da Eco-92, quando a camada de ozônio era um tema central, até hoje, com as discussões climáticas?
CLAUDIO - Naquela época, foram assinados dois tratados sobre o clima, que já era algo na pauta de discussões, mas não era o que chamava mais a atenção. O tema central era a tentativa de casar a preservação forte dos anos 1970 e 1980 e o desenvolvimento sustentável.

SUZANA - Se a gente for olhar as tendências internacionais do Primeiro Mundo, onde todos esses conceitos foram formulados, na época do Clube de Roma [que apontou limites para o desenvolvimento devido aos crescentes impactos ambientais], da Carta de Belgrado [sobre educação ambiental], a preocupação era mais ambiental, porque o social deles nunca foi um problema muito sério.

Vejo uma diferença grande nos eventos internacionais. A educação ambiental nos países latinos sempre teve um componente social fortíssimo, não se consegue dissociar o ambiental e o social. Isso não aconteceu nas nações ricas -seus membros ficavam impressionados, dizendo "mas isso de que vocês estão tratando não tem a ver com a questão".

Claro que tem a ver, não se consegue fazer uma coisa sem a outra; para nós, isso sempre foi claro, para eles, não. Agora os ricos entenderam que o mundo chegou a um ponto de diferenças sociais tão gritantes que tiveram de ver que seu padrão de vida estava afetando o resto do planeta. Não que quisessem enxergar isso, mas não tiveram outra opção.

Nós já estamos vendo essa questão desde o inicio, os programas de educação ambiental que é a minha área sempre tiveram um componente social muito forte, enquanto no Primeiro Mundo não é assim. Eles levam a criança para ver a natureza. Não que isso seja ruim, nós fazemos isso, mas também tratamos da melhoria social e das questões de saúde pública, por tudo o que os menos favorecidos passam.

CLAUDIO - A década de 90 não foi promissora, tivemos avanços, mas perdemos uma quantidade enorme de florestas tropicais nesse período. As metas de Kyoto não foram cumpridas. Fazer meta para aparecer na foto é fácil, o problema é não ter um mecanismo que possa depois verificar e penalizar de alguma forma seu não alcance. As pessoas estabelecem metas de maneira irresponsável.

SUZANA - A natureza também nunca entrou como valor econômico, ela sempre veio de graça. Se você a tem de graça, tudo que é proteção da natureza está atrapalhando o progresso, porque a natureza está ali para servir a quem está enriquecendo. Se todo mundo vivesse o padrão de vida norte-americano, segundo estimativas canadenses, seriam necessários hoje, no mínimo, quatro planetas. Não vamos chegar lá. Esse crescimento indiscriminado é uma falácia, não chegaremos ao desenvolvimento no padrão de consumo do jeito que está preconizado atualmente.

O que está fazendo falta neste momento é investimento em tecnologia, como agora o Primeiro Mundo está fazendo. Como posso manter meu padrão de vida consumindo 10% do que estou consumindo? Em termos de energia, água etc. É uma combinação de coisas. E o Brasil tem todo potencial, mas não investe nele.

FOLHA - Um dos mecanismos de compensação ambiental é o Redd [que paga por desmatamento evitado], mas o Brasil sempre foi receoso alegando segurança nacional.
CLAUDIO - Isso é coisa do Ministério das Relações Exteriores. Não é colocando barreiras na fronteira que se faz segurança neste século, mas, sim, tomando posse intelectual e tecnológica da área, e isso significa grande esforço de pesquisa, de ocupação, de compreensão.

Na Costa Rica, o proprietário recebe um pagamento pelos serviços ambientais que a propriedade dele está provendo ao resto do país e do mundo. Não sou mercantilista, mas também não é justo não ter um sistema mais equilibrado e que envolva econômico, social e ambiental.

FOLHA - O Brasil está preparado para ter recursos de compensação?
SUZANA - Não. Tem que se preparar. O país tinha de estar na linha de frente, mas está atrasado. O Redd vai entrar para tentar salvar o planeta.

CLAUDIO - Por exemplo, uma indústria europeia pode botar filtros, fazer um monte de coisa, mas, se continuar operando, ainda terá uma parte que não poderá fazer [para evitar emissões]. Essa parte pode ser feita em compensação, na forma da compra dos serviços prestados pelas florestas no Brasil ou em outro lugar do mundo.

É um mercado enorme de crédito, seria uma boa forma de compensar os proprietários, não para ser uma coisa mercantilista, não para o proprietário parar de trabalhar e ficar vivendo disso, mas para ter pelo menos uma pequena compensação pela propriedade dele.

FOLHA - Como a agenda das mudanças climáticas influencia a de ONGs como o Ipê?
CLAUDIO - Trabalhamos muito com reflorestamento, com floresta nativa na Amazônia e com florestas de comunidades e de propriedades privadas também. Então achamos que é possível criar mecanismos de perpetuação do princípio que aumentem o nível de áreas protegidas no Brasil e que aumentem a floresta brasileira também.

FOLHA - Isso pode desdobrar-se para outros tipos de conservação?
SUZANA - O proprietário particular hoje tem a RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural), que não dá muitas vantagens. Ela é espetacular, um mecanismo muito legal, mas a compensação ainda é muito pequena. O proprietário tem que arcar com tudo.

CLAUDIO - [Na RPPN] não há um incentivo para uma pessoa transformar sua fazenda em reserva, por exemplo. Se não tiver incentivo verdadeiro, a pressão familiar fica muito grande. Por mais que o proprietário seja apaixonado pela natureza, é um patrimônio parado.

FOLHA - Vocês são apoiados por grandes empresários brasileiros, e isso parece ser uma exceção. Como veem a agenda socioambiental privada?
SUZANA - São sempre os mesmos que dão os exemplos, os com uma mentalidade de vanguarda e visionários. Veja o Fabio Barbosa, do Banco Real, que está tentando implantar uma nova cultura no Santander. O Claudio brinca que é Davi e Golias. O Davi, com o Fabio Barbosa, tentando fazer com que o Santander incorpore os valores do Real.

CLAUDIO - São os helênicos tentando resistir à invasão do exército romano (risos).

SUZANA - Você pega o Fabio, o Grupo Martins, a Natura, as Havaianas até certo ponto. A Camargo Corrêa é outro caso que vinha de um histórico de vários impactos e que, acho, está tentando modificar isso.
Nós lidamos com exceções. Acho que esses empresários têm um papel educacional, de contágio mais forte do que nós. Eles também não estão sendo tão bonzinhos assim. Estão implementando um novo modelo que dá lucro. Ninguém mais aguenta as coisas sujas, estragadas, corruptas. As pessoas querem algo transparente e ético. A história desses empresários na nossa vida é muito nova.

CLAUDIO - E a deles no socioambiental também. Com raras exceções, há um espaço crescente de um novo posicionamento. O Brasil está mudando.

FOLHA - Tirando essas exceções, os empresários brasileiros não têm uma agenda socioambiental?
CLAUDIO - Muita gente tem, só que há muitos que até querem, mas não sabem o que fazer, e muitos que ainda olham pelo marketing, pela imagem. Não incorporam os valores.

SUZANA - A economia, a biodiversidade, o socioambiental ficam na periferia, mas têm de ficar no centro da economia, do desenvolvimento econômico e do mundo empresarial. E no centro das decisões dos governantes.

FOLHA - Vocês avaliam que alguém no governo brasileiro tem uma agenda?
SUZANA - O que eu acho, pessoalmente, é que a única pessoa pública com essa mentalidade é a Marina Silva, porque está dentro do DNA dela. Ela tentou como ministra fazer com que o ambiente fosse uma questão transversal dentro de uma gestão política. E, durante muito tempo, foi respeitada pela posição ética que representa, mas não pelo posicionamento [ambiental]. Agora, se for olhar o que está aí, o que o Lula está apresentando, é uma mentalidade velha.

FOLHA - Mas o Plano Nacional de Mudanças Climáticas foi feito depois dela.
CLAUDIO - Muita coisa foi feita depois dela. O [Carlos] Minc [ministro do Meio Ambiente], apesar de midiático, não é tão doido quanto parece. Mas houve uma confusão causada nessa transição. Estou falando do Lula, que não estava dando sinais claros de que rumo ele queria tomar com o Brasil. Isso [a saída da Marina] forçou um pouco a mudança no posicionamento e gerou algumas políticas bastante mais apropriadas.

FOLHA - E nas outras esferas de governo, já que vocês trabalham muito com gestores públicos locais, como está essa mentalidade?
SUZANA - É como nas unidades de conservação. Quando o gestor acredita que é possível fazer alguma coisa, elas acontecem. Se ele tem espírito empreendedor, consegue fazer a diferença. Agora quando é daquele tipo que 'meu salário está garantido no fim do mês, não vou fazer nada porque vai me chatear, vai me dar trabalho', não se consegue muito. Na política é um pouco mais complicado, a pressão por não fazer nada é muito mais forte.

FOLHA - Muito se critica a postura dos países ricos na discussão das mudanças climáticas. Em outubro, houve uma cúpula de Estados amazônicos no Brasil, que estava esvaziada. O que acontece com o papel dos países pobres?
CLAUDIO - O momento é sério, as pessoas não estão entendendo as coisas. Infelizmente os países pobres também estão pensando assim: 'O momento é sério, mas primeiro eu'. Mas você pode pensar que eles não têm os recursos para tirar proveito da economia do século 21 e da economia do conhecimento, e daí querem manter o status quo e o direito de trocar a cobertura florestal por monoculturas.

SUZANA - É emergencial, como se tivesse havido um acidente e só colocasse um 'band-aid'.

FOLHA - Na questão da monocultura, a cana-de-açúcar é uma das soluções para o aquecimento global. Mas coloca em paralelo duas éticas distintas: que são a questão financeira e a de como lidar com o bioma. No Pontal do Paranapanema, como avaliam a chegada dessa cultura?
CLAUDIO - A cana tem dois universos, o lado da grande cidade com o álcool e o que ele faz em termos de redução do gás carbônico de forma significativa; e o lado rural, em que é ruim para a biodiversidade como toda monocultura.

Estamos terminando um estudo cujos resultados preliminares mostram que é baixíssima a biodiversidade -em diversidade e quantidade- numa plantação de cana. E no Brasil ainda se usa fogo para colher cana. O governo de São Paulo estendeu por 24 anos esse processo. Não por razões sociais, pois o sistema de boias-frias está quase acabado -e nem deveria existir, pois se precisa de empregos dignos.

Sabemos que a monocultura não é boa para biodiversidade, mas mesmo assim reconhecemos que precisa ter uma parte de monocultura, pois precisamos comer e viver.

FOLHA - Então aí a agenda da biodiversidade e a das mudanças climáticas se confrontam?
SUZANA - Falta muito planejamento. Deveria haver um mapa para o Brasil que defina a área da monocultura, mas também o corredor de mata, as fontes de água protegidas, os núcleos de floresta. Mas não há isso, porque é mais fácil olhar para onde o solo é mais rico e desmatar.

CLAUDIO - O nosso exemplo do Pontal que a gente está tentando colocar em outros lugares do Brasil, é isso, é olhar a paisagem regional na zona rural e a partir dela construir um sistema que pode ao mesmo tempo produzir e conservar. Que dê uma vida digna para as pessoas também: é o socioambiental no seu sentido mais amplo, mas para fazer isso temos que nos planejar regionalmente, é preciso que exista um fórum em que as pessoas discutam a região, a reorganização do espaço. Isso trará ao país um futuro muito mais certo do que se o Brasil continuar calcado em uma economia de monocultura indiscriminada, sem planejamento ecológico ou econômico. Não é complicado nem difícil, é sair do egoísmo.

FOLHA - Qual seria o papel do governo e da sociedade nesse cenário de emergência na questão do clima?
CLAUDIO - Nós temos que cobrar de quem fala por nós um posicionamento pelo futuro do planeta e nosso, pois não é coisa para as gerações de um futuro muito longínquo. Há quem fique querendo diminuir a qualidade das previsões do IPCC [painel do clima da ONU], mas eles são os melhores pesquisadores do planeta e não devem estar errados.

Conheci um senhor que já faleceu, proprietário de fazendas em Minas [Gerais] e um milionário do café. Ele deixou 600 hectares de uma fazenda dele em mata, e eu perguntei por quê. Ele respondeu: 'Eu não sei bem, mas que meu café produz mais do que o dos vizinhos, produz'.

No jeito ingênuo dele, está o outro lado da história do cientista ambiental de que estamos falando aqui. O café dele produz mais porque tem mais polinizadores, porque a floresta traz um microclima melhor, uma melhoria na qualidade do solo, na questão da água. É uma produção mais equilibrada.

SUZANA - Os assentados do Pontal que trabalham com a gente compreendem isso, a premissa de que, com floresta, o resto da propriedade melhora, tem menos peste, o solo fica melhor, a água fica protegida. No micro, nós como ONG podemos atuar. O desafio é conseguirmos entrar na escala em termos internacionais

Há ONGs como o Ipê em várias partes do mundo, com base em ciência, academia, de tamanho médio, nacionais, trabalhando na ponta com os problemas verdadeiros. A gente consegue atuar dentro dos nossos microcenários, mas a gente precisa de alguma maneira de uma voz que seja mais ouvida internacionalmente. De baixo para cima, não de cima para baixo, porque o que a gente sente é que há uma tendência grande de as coisas virem prontas e de o pequeno ser obrigado a cumprir.

CLAUDIO - São criadas pelas políticas ambientais internacionais, desenvolvidas no mundo das agências multilaterais com quem tem assento nelas: organizações enormes. Por isso nós estamos agora em alianças, na tentativa de conseguir uma representação para sermos iguais nesse processo.

FOLHA - Existe uma dicotomia entre as ONGs nacionais e as internacionais?
CLAUDIO - Existem ações diferentes e representações diferentes com atividades totalmente diferentes.

SUZANA - O peso das ONGs grandes nas decisões é muito maior que o das pequenas locais como o Ipê. Isso é natural porque elas se dedicam muito às políticas internacionais. Tem uma delas de que várias pessoas do Ipê e da Wildlife Trust Alliance (aliança de ONGs de médio porte) também fazem parte, que é UICN (União Internacional de Conservação da Natureza). Eles têm cadeira na ONU e estão abrindo um escritório no Brasil. Mas ainda faltam assentos.

CLAUDIO - Um dos objetivos nossos objetivos na Alliance é contratar no curto prazo uma pessoa para buscar assentos nesses órgãos multilaterais.

FOLHA - De qual tema vocês falariam lá que as grandes ONGs internacionais não abordam?
SUZANA - Não acho que a gente falaria o que eles não falam, mas é a forma de fazer, porque os grandes têm os princípios muito corretos, querem reflorestamento, manutenção das florestas nativas, a biodiversidade mais bem protegida. Mas na forma de fazer acontecer nos países, as ONGs menores, de médio e pequeno portes, apresentam um papel extraordinário que as grandes normalmente atropelam.

FOLHA - Atropelam como?
SUZANA - Na implementação. Por exemplo, você se compromete a reflorestar determinada área, encontra locais altamente importantes para a biodiversidade e quer proteger aquele núcleo, fazer um cinturão verde. Como é que vai fazer? As grandes têm mais facilidade de levantar fundos, mas, na hora de implementar, muitas vezes não têm a estrutura. Então sublocam as ONGs menores -e isso é complicado.

FOLHA - Elas não têm estrutura ou know-how?
SUZANA - Know-how até elas teriam, porque contratam quem elas querem, já que vêm com dinheiro. A história é que elas precisam de muitas pessoas já atuando naquelas regiões.

FOLHA - Elas contratam ONGs menores?
SUZANA - Muitas vezes, contratam ONGs ou pessoas locais, mas a forma de fazer vêm muito de cima para baixo.

CLAUDIO - Um é rico em dinheiro, e o outro, em biodiversidade. Quem é rico em dinheiro tem que ouvir quem é rico em biodiversidade para saber a melhor forma de fazer. Muitas vezes o rico em dinheiro chega com o projeto pronto, dizendo o que fazer, com a frase 'eu sei o que é melhor para vocês'.

SUZANA - E isso eu não acho certo. É a mesma coisa que o governo faz: um projeto para a região do Pontal do Paranapanema sem consultar as pessoas locais. Tudo que vem de cima para baixo raramente dá certo.
Leva tempo para construir confiança, para ter um grupo de pessoas com que você atua. Às vezes elas [as grandes ONGs] não têm tempo, têm de mostrar resultado, porque coletaram verba que precisa ser gasta de determinada maneira.

Avalio que as ONGs internacionais teriam um papel fundamental -e durante um tempo, bem no inicio, até tiveram- na capacitação das pessoas locais. Se o recurso angariado tivesse um componente forte em capacitação, elas construiriam um exército de sabedoria.

FOLHA - Essa necessidade de resultados rápidos com ONGs sublocadas pode fragmentar o processo?
CLAUDIO - Sim. Ninguém investe em capacitação, pois dá resultados muito fortes, mas lentos. Mas o medo não é só das ONGs, é do governo também.

SUZANA - No Ipê, fizemos esforço para capacitação a vida inteira. Começou internamente, incentivávamos os estagiários a partirem para o mestrado, o doutorado. Hoje o instituto tem esse ponto forte [30% de mestres e doutores]. Enquanto os Estados Unidos têm mais de 300 cursos sobre biologia da conservação, a América Latina inteira tinha 12 cursos até algum tempo atrás, para toda essa biodiversidade.

É um ponto muito crucial. Só 30% dos 'papers' que são publicados nas grandes revistas, nas reconhecidas, sobre a Amazônia brasileira, tem um autor ou um coautor brasileiro. O resto é tudo 'gringo'. O conhecimento gerado fica no norte e, se não chega até nós, como é que nós vamos competir? Os pesquisadores [estrangeiros] muitas vezes nem se lembram de mandar cópia para as unidades de conservação em que estudaram. A pesquisa fica lá.

CLAUDIO - Não é só que o conhecimento não chega, nós não o estamos produzindo.

SUZANA - É um grau de desequilíbrio muito grande de conhecimento -e conhecimento é poder. O esforço do Ipê e de outras ONGs -porque a gente não está sozinho nisso- é fazer uma massa crítica que pense diferente. É abrir caminhos para que as pessoas venham a ter um nível de conhecimento que faça a diferença.

CLAUDIO - Nesse espírito, é preciso capacitar fortemente não para as prateleiras das bibliotecas, mas para um conhecimento que se transforme em ações. Não sou contra a pesquisa pela pesquisa, mas às vezes a gente tem vergonha de fazer pesquisa aplicada no Brasil.

SUZANA - É considerada até às vezes de segunda classe. Fica o mundo do conhecimento que é o mundo das universidades, que não se mesclam.
No nosso mestrado, temos uma disciplina que está fazendo uma diferença enorme, com resolução de problemas reais.

CLAUDIO - Que é como um [empreendimento] pode beneficiar o outro [uma comunidade] e todos podem beneficiar a biodiversidade. O que tem que desafiar é o tema, e não a sua divisão de conhecimentos.

FOLHA - Suzana, para um cenário um pouco mais longo, trazer a educação ambiental para a escola fundamental, para a criança que já teve uma parcela ambiental bem fraca, é um sonho distante?
SUZANA - Acho que é um desafio. Os conceitos da educação ambiental estão corretos. A legislação brasileira tem uma lei correta. O grande desafio é implementar, porque os professores não estão prontos.

FOLHA - O Ipê se baliza muito pela palavra 'não'. Seja ao pelejar com os 'nãos' que ouve, seja para dizer 'não' a recursos desalinhados à sua missão. Vocês colecionaram muitos inimigos agindo assim?
CLAUDIO - Muitos. Eu tenho processos civis e criminais contra mim.

SUZANA - Alguns inimigos, sim, mas minha visão é mais sobre formas diferentes de atuação. Já ouvimos de um parceiro que jamais trabalharia com o Greenpeace, pois não queriam ter como colaborador uma organização que bate o tempo todo. Mas o papel deles é também importante, embora diferente.

FOLHA - Voltando um pouco à questão do desenvolvimento sustentável. Como vocês veem o andamento do tema?
CLAUDIO - É preciso que a economia entre de vez. O que não dá é ficarmos presos à ditadura do PIB. Quando se faz uma guerra, o PIB aumenta. Como podemos ficar presos a um modelo como esse?

FOLHA - Comenta-se no terceiro setor que se vive agora um momento de euforia pós-crise em termos de recursos que estavam parados e agora estão sendo liberados de uma só vez.
CLAUDIO - Isso é verdade atualmente, e na Costa Rica discutimos isso, porque todos nós nos preparamos para a crise. A reunião do final de ano foi sobre uma preparação de emergência para sobreviver neste ano, mas o resultado não foi o esperado.

FOLHA - A crise foi uma 'marolinha'?
CLAUDIO - Sim, ela veio, mas foi uma 'marolinha', como disse o presidente Lula. Mas é preciso cautela. Acho que a solução foi muito artificial, injetou-se um dinheiro grande e sei que tem muitas coisas por trás que ainda não estão resolvidas.

Nós vamos ser cautelosos, mas este ano foi bom para captação de recursos. Não é nada do que a gente esperava, nosso planejamento no ano passado foi para ver onde dava para segurar de orçamento.

FOLHA - Como é ser uma ONG sem fins lucrativos que está abrindo uma empresa?
CLAUDIO - Isso é uma sofisticação no terceiro setor. Quanto mais a ONG cresce, mais perto fica da morte -isso significa que ninguém quer doar dinheiro para suas despesas administrativas, que crescem. Nos Estados Unidos, por exemplo, que já têm isso bem consagrado, existem doações feitas para a estrutura administrativa e não só para projetos. No Brasil ainda não temos isso.

O Ipê não é um prestador de serviços. No entanto, não seria inteligente da nossa parte deixar de aproveitar uma oportunidade de ganhar recursos sem restrição que nos permite crescer de maneira sólida. Então fizemos uma empresa. As pessoas que contratam ONGs não querem pagar preços justos, não por maldade, mas porque acham que no terceiro setor todo mundo tem que trabalhar de graça, ser voluntário o tempo todo.

Utilizamos nossa reputação, nossos conhecimentos para atender as demandas de prestação de serviço. Assim foi criada a Arvorar, uma empresa que pertence 95% ao Ipê e 5% para quem está trabalhando nela naquele momento. É o que modernamente a FGV está chamando de empresa dois e meio, porque fica entre o segundo e terceiro setor, já que todo o lucro vai para a missão do Ipê.

FOLHA - Vocês são compreendidos como uma ONG que tem uma empresa lucrativa?
CLAUDIO - Muita gente não compreende. Ainda há indefinição jurídica em relação a isso. Criamos a Arvorar baseados em um parecer do [escritório de advocacia] Pinheiro Neto, fomos aceitos na Junta Comercial e nos registramos.

FOLHA - É arriscado?
CLAUDIO - Sim, arriscado de certa forma, porque podemos correr o risco de sermos mal interpretados. Temos uma reputação muito grande e estamos colocando-a acima de tudo, dizendo que é sério, não é uma forma de ganhar dinheiro extra, lavar dinheiro, nada disso.

FOLHA - E a empresa que você abriu com o Guilherme Leal, da Natura, e o Juscelino Martins, do Grupo Martins?
CLAUDIO - A Biofílica é uma empresa que trata de assuntos de prestação de serviços ambientais. Ela vem de uma missão de ter 5 milhões de hectares de áreas protegidas privadas na Amazônia.

FOLHA - Agora que vocês estão trabalhando com a aliança de ONGs para ter escala internacional e o fato de terem vencido o prêmio, que tem como missão replicar a atuação fora do país, de que forma o desafio de crescer desponta?
CLAUDIO - Para mim, particularmente, é um prazer extraordinário, porque após tantos anos de construção com uma preocupação grande, poderemos dar escala ao que a gente faz. A nossa estratégia de criar sementes e espalhá-las é boa, mas ainda assim está longe de ser uma escala grande e nós precisamos influenciar muito mais internacionalmente com o que a gente está fazendo hoje. A aliança é uma estratégia para isso, e o prêmio é uma porta de ouro, uma abertura para ser ouvido, para influenciar as decisões internacionais. Pretendemos usar isso não para ficarmos famosos e sim para dar escala internacional ao socioambiental e, naturalmente, a um mundo melhor.

Saiba mais sobre Claudio e Suzana Padua e sobre o Projeto Ipê

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