Posto de saúde flutuante alegra o Tapajós

Barco de R$ 2,6 mi, doado por holandeses a projeto brasileiro, oferece atendimento médico e odontológico às margens do rio no Pará

Iniciativa, que é mantida com verba internacional, beneficia 29 mil pessoas em área de floresta, divididas em 143 comunidades

MARCELO LEITE
DA FOLHA DE S.PAULO

No barco Abaré, do Projeto Saúde e Alegria (PSA), ninguém precisa de despertador. Por volta das 5h (7h em Brasília), o silêncio repentino com a troca de geradores a diesel é a deixa para os últimos dos 20 tripulantes saltarem de suas camas -ou redes. Às 7h30 tudo tem de estar pronto para abrir as portas do pioneiro posto de saúde flutuante da Amazônia.
Quem não tem função definida, como o jornalista embarcado, pode se permitir mais alguns minutos de descanso no camarote 2, junto à ponte de comando. O calor e o ruído dos dois motores propulsores a diesel, um tropel de 240 cavalos cada um, põem fim à esperança.
São 5h20 e o Abaré -"amigo" ou "cuidador", em língua indígena- começa a balançar, sinal de que voltou a navegar. Começa mais uma jornada do barco doado em comodato ao projeto pela organização holandesa Terre des Hommes, um posto de saúde flutuante construído em Manaus (AM) ao custo de R$ 2,6 milhões. Outro R$ 1,5 milhão anual da ONG garante o combustível e uma equipe fixa para o Abaré.
Com as primeiras luzes da manhã, a embarcação deixa o abrigo de Capixauã. A meia lua de areia branca, quase um lago, é um dos raros abrigos na margem esquerda do Tapajós. Desse lado do rio, o fundo é muito plano e impede a aproximação de barcos na seca, mesmo quando o calado é baixo, como os 80 centímetros do Abaré.
O rio, em alguns pontos, chega a ter dez quilômetros de largura. Suas águas verdes podem presenciar tempestades dignas de um oceano. O prático Miguel da Silva Rego e o contramestre David Pereira recusam-se a serem surpreendidos por elas ao largo e no escuro.
As longuíssimas praias que surgem em ambas as margens do rio, de julho a dezembro, parecem desertas. Na floresta detrás delas, porém, vive a maior parte das 29 mil pessoas de 143 comunidades atendidas pelo PSA, entre as cerca de 800 espalhadas pela área rural de Santarém - município maior que o Estado de Sergipe.

Chegada a Suruacá

A contemplada, nesta manhã de 13 de dezembro, é a vila de Suruacá (não confundir com Surucuá, rio acima). Nela moram 110 famílias, mais de 500 habitantes, todas as casas servidas com água encanada e tratada. Do barco, ancorado a 300 metros da areia, enxerga-se apenas a escada de 56 degraus até o topo do barranco.
São 6h20. Na outra ponta do corredor de camarotes que atravessa o terceiro deque do barco, o café está servido: pão, manteiga, requeijão, queijo, presunto, bolo, biscoitos. "A hotelaria é de primeira", avalia o médico paulistano Fabio Tozzi, integrante do projeto.
Tozzi já se alimentou. Assim como os outros 11 tripulantes encarregados do atendimento de saúde (os demais são práticos, marinheiros e cozinheiras), está de banho tomado. Vários deles estão vestidos de branco até os pés.
O piso do Abaré brilha como o de um hospital privado de primeira linha no Rio de Janeiro ou em São Paulo. O técnico Antônio Anastasis prepara freneticamente o laboratório de análises clínicas que está sob seu comando. Fica bem ao lado da sala com as duas autoclaves para esterilizar instrumentos, no final do corredor que atravessa o segundo deque.
Na outra ponta, a dentista Camila Tormes faz o mesmo com o gabinete dentário, junto à sala de espera e cadastramento que fica na proa. Tozzi conversa na porta dos consultórios com três colegas médicos. São os voluntários Lorenza Campos e Frederico Amâncio, residentes da UFMG, e Daniel Araújo, da USP, embarcados em 29 de novembro.
Dois marinheiros de macacão branco, mangas compridas e luvas iniciam o traslado dos pacientes que se aglomeram na praia. Utilizam lanchas de alumínio, conhecidas na Amazônia como "voadeiras". A primeira atraca na popa do Abaré às 7h25, com uma dezena de pessoas -muitas crianças e pelo menos uma mulher grávida em cada uma das levas.
A passagem do barco e das lanchas atrai a atenção de quem ali vive. São moradores como Maria Isabel dos Santos Silva, uma idosa atendida no Abaré e que vive na comunidade de Prainha. Em sua canoa, ela observa a embarcação, onde ela e a neta, que tem síndrome de Down, foram examinadas.
A lista de locais atendidos divide-se segundo a margem do rio. À esquerda fica a reserva extrativista Tapajós-Arapiuns. Do outro lado, o direito, está a floresta nacional Tapajós.

Alongamento e risadas

Depois do cadastramento, as crianças são arrebanhadas pela palhaça Macaxeira Jackson (Edicleise da Silva Rego, arte-educadora). Primeiro, uma rápida sessão de alongamento e de risadas. Depois, no corredor externo do segundo deque, uma aulinha de escovação de dentes com o "bocão" e a escova que foram improvisados na noite anterior em papelão.
Um dos desembarcados é o "presidente" da comunidade, Miguel Lima. Ainda no convés de proa, conta que tem 11 irmãos, mas que o número de filhos por mulher vem caindo. Com a distribuição gratuita de camisinhas, baixou de 8 para 4.
Lima se mostra satisfeito ao saber que o gabinete dentário do Abaré está aparelhado para fazer restaurações. Comenta que o dentista mais próximo, em Amorim, só faz extrações. "Em Santarém fica caro."
Os ribeirinhos que precisarem se deslocar até a sede do município para receber tratamento pagam R$ 10 de passagem nos barcos, e mais R$ 10 na volta. Sem garantia de atendimento, claro, como costuma ocorrer na saúde pública.

Boas e más notícias

O próprio Lima aponta para um espinho no braço esquerdo. Conta que já tinha ido três vezes a Santarém (PA) para extraí-lo, sem sucesso. Ao ser finalmente atendido por um médico, no Abaré, recebe uma boa e uma má notícia.
Quem o examina no consultório, às 9h25, é Frederico Amâncio. O médico mineiro, que faz residência em infectologia, dá primeiro a boa notícia: se for somente um espinho, não será preciso extrair. Ele terminará absorvido.
A lesão na pele, porém, pode indicar uma leishmaniose cutânea. Amâncio lhe dá uma pomada para evitar infecção. E alerta que, se a ferida aumentar, terá de procurá-lo no hospital de Santarém para colher material e verificar a presença do protozoário Leishmania.
O trabalho prossegue até as 14h, quando desembarcam os últimos pacientes que aguardavam resultados de exames de laboratório. Ao todo foram 51 consultas, sete tratamentos odontológicos (12 restaurações de resina e cinco extrações) e três eletrocardiogramas.
"Um dia tranqüilo", na avaliação do enfermeiro Reidevandro Machado da Silva. Ele é o responsável pela administração da embarcação, incluindo o abastecimento dos 400 itens da farmácia de bordo (260 medicamentos, que são distribuídos gratuitamente).
Em dias mais movimentados, como o anterior, na comunidade de Muratuba, podem acontecer até 87 consultas médicas e dez odontológicas.

Transporte, alojamento e alimentação do jornalista Marcelo Leite na região do Tapajós foram custeados pelo Projeto Saúde e Alegria

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Médico troca carreira por águas verdes

A bússola do cirurgião vascular e navegador Fabio Lambertini Tozzi, 48, é governada por três As: Adriana, Antártida e Amazônia. Contratado em abril pelo Projeto Saúde e Alegria como médico do BM Abaré, Tozzi descobriu sua terceira paixão -as águas verdes do Tapajós- após três anos a bordo de outro barco, o Kuarup.
Desde então, o veleiro Kuarup é sua casa. Tem 12 metros de comprimento e um casco confeccionado em metal, como o Paratii 2 do amigo Amyr Klink.
Eles se conheceram na encarnação anterior de Tozzi como funcionário do Hospital Universitário da USP, que durou 20 anos. Dava cursos de primeiros socorros no Instituto Oceanográfico da universidade e um dia pediu para conhecer a Antártida. Foi atendido.
Foi assim que conheceu Klink, que depois o chamou para integrar como médico a expedição de circunavegação, em 2004. Agora, Tozzi retorna todo verão à Antártida. Chega a ganhar US$ 25 mil por viagem.
O pagamento equivale a nove meses de trabalho a bordo do Abaré, mas Tozzi está feliz com o novo emprego no "maravilhoso" Projeto Saúde e Alegria e a renda estável que lhe traz.
Adriana Barzotti Kohlrausch, companheira de Kuarup, é outra paixão com histórico geográfico.
Conheceram-se no arquipélago São Pedro e São Paulo, um punhado de rochas a mais de 800 quilômetros da costa brasileira, onde ela pesquisava os pássaros atobás.
Juntos, reformaram o veleiro por um ano e meio, "presos em São Paulo". Quando o barco voltou à água, batizaram-no como Kuarup. "Foi como se as nossas almas se libertassem", conta Tozzi. Três anos depois, o casal chegava ao Tapajós -"o paraíso". (ML)

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Infectologista levanta fundos para ONG em SP

DA FOLHA DE S.PAULO

A planta do barco Abaré começou a ser esboçada pelo médico paulistano Eugenio Scannavino Neto há 20 anos, quando surgiu o Projeto Saúde e Alegria. "Agora que tem o Abaré, eu não estou lá. Era o meu sonho, mas não posso aproveitar", diz.
O infectologista passa hoje a maior parte do tempo em São Paulo. Transformou-se num elo crucial das 143 comunidades ribeirinhas dos rios Tapajós e Arapiuns com o restante do Brasil e do mundo.
"O que eu gosto de fazer na vida é ser médico de comunidade. Se eu atendo uma criança, salvo uma. Se fico no escritório [em Santarém], salvo cem. Se venho para cá [SP], mil", explica, referindo-se ao trabalho de articulação com empresários e de levantamento de fundos.
A ONG que ele e o irmão dirigem conta com um orçamento anual de R$ 2,6 milhões. Embora seja a principal atração, o barco Abaré -inaugurado em agosto- representa somente uma parcela da operação PSA. O anterior, batizado "Saúde e Alegria", ainda opera na área do rio Arapiuns.
Depois de estudar no Rio, viajar por todo o Brasil, tornar-se militante estudantil e vegetariano, Scannavino Neto foi trabalhar no campus avançado da Universidade Federal Fluminense em Oriximiná (PA). Terminou contratado pela Prefeitura de Santarém, em 1984, para trabalhar na zona rural do município. Um médico para 800 comunidades, espalhadas por um território maior que Sergipe e acessíveis quase que só por água.
Durante três anos, trabalhou numa proposta integrada de saúde e "alegria" (arte-educação para higiene, organização comunitária e agricultura sustentável). Desiludiu-se com a instabilidade política das administrações municipais e partiu para criar a ONG. (ML)

ONG reduz mortalidade infantil à metade

Medidas sanitárias simples, como soro caseiro e água clorada, tornaram raros os casos de diarréia em região do Tapajós

Projeto planeja usar postos de internet por satélite para orientar agentes de saúde em tempo real, promovendo "telemedicina na floresta"

DA FOLHA DE S.PAULO

São 11h. O resgate de "um ferido a bala" na comunidade de Mapiri, a montante no Tapajós, se revela menos preocupante do que se imaginava. Os chumbinhos de cartucheira calibre 28 disparados contra as nádegas de Eliseu (nome fictício), em acidente de caça no dia anterior, não exigem cirurgia.
Eliseu como que se desculpa pelo ferimento, talvez preocupado com a reação dos visitantes à caça na área da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns. "Sabe como é, vida de pobre", explica-se. "Não é todo dia que tem o conforto", diz, referindo-se à carne vermelha.
Desfeita a comoção, prossegue o atendimento no Abaré. Caetano Scannavino Filho, coordenador do Projeto Saúde e Alegria (PSA), lidera um pequeno grupo que desembarca a seguir em Suruacá. A idéia é conhecer, concretamente, como foi possível baixar à metade a mortalidade infantil na região.
A queda no indicador foi verificada por José de Jesus Sousa Lemos, da Universidade Federal do Ceará, em diagnóstico realizado para o PSA em 2000. Fora das regiões alcançadas pelo projeto, a taxa de mortalidade até 1 ano era de 52 crianças por mil nascidas vivas. Nas áreas atendidas, 27 por mil.
É uma cifra similar à média brasileira de hoje (26,6/mil) e inferior à daquele ano (30,1/ mil). Ainda assim, 15,7% dos óbitos registrados entre ribeirinhos são de crianças até 1 ano.
Em terra, após passar por um dos quatro telecentros (internet por satélite alimentada com painéis solares) montados pelo PSA na região, o grupo chega à primeira caixa-d'água da localidade. Foi instalada 12 anos antes, com recursos da Fundação Konrad Adenauer, da Alemanha, mas está prestes a ser substituída.
Suruacá quer crescer. Todas as casas têm água encanada, pela qual cada família paga R$ 15 mensais. Novos moradores continuam a chegar e a nascer, porém. São hoje 110 famílias.
A nova caixa-d'água está sendo erguida a cerca de um quilômetro dali. Uma bomba movida por energia solar acionará o poço de 60 metros, eliminando o custo do gerador do sistema antigo. Em outras palavras, a conta de água deve baixar.

Tratar saúde, não doença

Higiene e condições sanitárias ocupam o centro da atuação do PSA. "Sempre quis trabalhar com saúde, não com doença", resume o médico infectologista Eugenio Scannavino Neto, idealizador -com a arte-educadora Márcia Gama, sua mulher na época- do PSA, para o qual atraiu depois seu irmão mais novo, Caetano.
A tradição local de gincanas e circos mambembes foi reinventada pela ONG no Gran Circo Mocorongo. O espetáculo era montado com a comunidade em cada local visitado. Esquetes rápidos e simples, para ensinar coisas como escovar os dentes. Uma forma de pôr em prática o lema do grupo: "Saúde, alegria do corpo; alegria, saúde da alma".
Ao lado da educação pelo circo, montou-se ao longo dos anos uma rede de agentes comunitários (hoje funcionários das prefeituras) e outra de radioamadores. Cada uma tem hoje cerca de 70 integrantes.
Além de organizar o cuidado básico à população, essas redes servem para acelerar remoções de urgência. A comunicação rápida é crucial numa paisagem em que mesmo de voadeira podem ser necessárias mais de seis horas para alcançar um hospital em Santarém. A voadeira adaptada pelo PSA ganhou o nome de ambulancha.
A rede de telecentros em formação também será usada com esse objetivo. Por meio de webcams e sistemas de voz, a idéia é pôr agentes de saúde em contato direto com médicos, à distância, para orientação em tempo real. "Telemedicina na floresta", entusiasma-se Caetano Scannavino.
A base do trabalho, porém, são medidas mais simples. Por exemplo, soro caseiro (sal e açúcar na proporção certa) e hipoclorito para tratar a água de beber, fabricado localmente com ajuda de células solares. Ou, então, filtros e as chamadas "pedras sanitárias" -piso de cimento para impermeabilizar corretamente as fossas sanitárias, ao custo de R$ 5 a unidade.
Nos locais onde começou o PSA, quase todas as famílias contam com água de poço tratada com cloro e usam filtros. Com esse cerco à contaminação pela água, os casos de diarréia foram escasseando. "Já sabemos o que tem de fazer", afirma Eugenio Scannavino. "Tem solução para tudo na Amazônia." (ML)

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