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08/04/2004
-
08h01
BELL KRANZ
Editora do Equilíbrio
"Eba! Amanhã tem bacalhau." Essa frase animada é um forte indício de que o sentido do jejum de carne, para o católico em questão, irá para o ralo nesta Sexta-Feira Santa. Na casa da sogra, da mama ou no restaurante da esquina (os cardápios se "convertem" nesta época), ele muito provavelmente vai se refestelar --ou se entupir-- da iguaria preparada com esmero para compensar a falta da carne. E a idéia de sacrifício, de renúncia à abundância ou de penitência do jejum religioso simplesmente desaparece. Por fim, após o santo almoço, quem dispõe de um tempinho dorme um bocadinho --afinal a carne pede.
E como pede! Está sempre solicitando e de forma inexorável --por fome, sede, sono, dor, frio. As culturas com base na filosofia grega, como as ocidentais, apoiadas no pensamento platônico, situam o corpo como prisão da alma, diz o professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e colunista da Folha Mario Sergio Cortella. O corpo é entendido como a sede da necessidade, o lugar da privação --ele dá cansaço, adoece.
Dá prazer também, como o sexual. Mas é passageiro, a necessidade logo volta à tona. Daí entra a função do jejum em boa parte das religiões, como uma forma de saciar esse corpo insaciável.
Em entrevistas com monge budista, rabino, xeque e cardeal, o jejum aparece como técnica para "tirar o corpo da frente" e, assim, alcançar um estado de desapego material, aproximar-se da divindade ou atingir a prática da solidariedade com os carentes, segundo a religião. O "faminto" também pode ser agraciado com bem-estar, com virtudes como humildade, torna-se mais alerta, com os sentidos mais vívidos, enxergando melhor o entorno e o interior de si mesmo.
Comer, assim como dormir, diz o rabino Nilton Bonder, da Congregação Judaica do Brasil, é uma função que consome um tempo muito grande na vida da pessoa e também da sua atenção -desde a obtenção do alimento até a sua preparação e o ato de comer. "Quando você tira essa função do caminho, percebe: "Uau, alguma coisa é mais importante do que a comida'", diz o rabino. O jejum, portanto, libera a pessoa para ter um dia todo devotado à prática espiritual.
Entre os muçulmanos, essa prática é das mais rígidas e longas. E sentir a fome na pele, pelo menos nesse caso, faz a pessoa se mexer. É fácil ver os necessitados na rua tendo em casa a geladeira cheia, você pensa neles por cinco minutos e pronto, afirma o xeque Jihad Hassan, vice-presidente da Assembléia Mundial da Juventude Islâmica.
A questão é jejuar o mês todo, e a pessoa passar da retórica para a prática, envolvendo-se com os carentes -ou, digamos, liberando a geladeira. "Nada melhor do que a necessidade para fazer o coração frio se aquecer e o coração duro amolecer", resume Hassan.
Essa necessidade promovida pelo jejum religioso "é uma sabedoria dos antigos para obter um certo domínio sobre o corpo, depurar o corpo para o espírito funcionar melhor", diz Antonio José Valverde, chefe do Departamento de Filosofia da PUC-São Paulo.
E a pessoa se sente mais feliz quando domina os seus desejos, porque fica mais forte espiritualmente, diz o cardeal José Freire Falcão, arcebispo emérito de Brasília. Ele recomenda o jejum sobretudo para as pessoas do mundo moderno, "envolvidas pelas "nutrições terrestres", alimentadas por desejos desordenados". A saber: o desejo desordenado de poder, em que se vai atrás dele com o sacrifício da própria dignidade ou esmagando o direito do outro, o de possuir sempre mais e o prazer desordenado.
Barriga vazia também deixa a pessoa humilde. "Com as forças enfraquecidas, você tem uma visão mais humilde de si mesmo; o ego forte tem dificuldade de aceitar suas fraquezas", diz Bonder. Porém há uma armadilha espiritual no jejum.
"Tudo que você faz de forma disciplinar para produzir mais humildade pode provocar o contrário." É o caso do sujeito se achar tão especial pelo que está realizando que acaba orgulhoso, em vez de humilde.
O fato é que "o negócio é bravo", diz o professor do Departamento de Teologia da PUC-SP Fernando Altemeyer. "Nunca sofri tanto como nas 12 primeiras horas." Seu jejum foi político (há 20 anos, em solidariedade a um ato realizado por um grupo de irlandeses), com privação total de alimento durante um dia e meio. Passadas as 12 horas, "você entra em um estado de equilíbrio, torna-se senhor daquele ato, não é mais o desejo que te comanda; foi impressionante para mim".
Além de espiritual, a meta da prática é uma purificação física, se bem que ambas se mesclam. O ex-professor de história das religiões da USP e monge budista do templo Higashi Honganji, Ricardo Mario Gonçalves, durante a sua iniciação, fez cerca de cem dias de abstinência, comendo pouquíssimo.
"O jejum deixa os sentidos mais apurados, você sente o corpo mais saudável, um pouco fraco, mas não está entorpecido por gordura e peso extra", diz ele. A monja Coen, zen-budista, que jejuou em templos no Japão, apesar de em sua tradição não existir a obrigação da prática, conta que a pessoa "escuta melhor, vê melhor, e o olfato e o tato ficam mais vívidos".
No Brasil, praticamente todos os povos indígenas seguem algum tipo de abstenção alimentar em momentos críticos, diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Durante a gravidez, o casal segue restrições alimentares; quando a criança nasce, a mãe faz um jejum, que é presente também em certos momentos da adolescência, no processo de formação do pajé ou em benefício do parente próximo que está doente -para eles, os corpos estão em comunicação; se o filho ingerir um alimento proibido para o pai doente, a saúde do progenitor será prejudicada. As razões do jejum? Físicas (terapêuticas) e metafísicas.
Também na umbanda e no candomblé, antes do recebimento dos orixás, o jejum é usado como regra de purificação. "Uma forma de se "limpar", de se distanciar do profano, do que é impuro e de se aproximar do sagrado", explica a antropóloga Fatima Tavares, do Departamento de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
E para quem jejum lembra mais um outro ritual, aquele praticado, religiosamente, todos os dias nas academias de ginástica, os médicos avisam: ele não garante um corpinho dos deuses. Pode até emagrecer no início, mas a médio prazo perde o efeito. Pesquisas feitas com ursos mostram que, depois da hibernação de meses, durante o inverno, os bichos saem quase tão gordos como quando entraram.
"Após vários jejuns, o organismo se acostuma a não queimar caloria, guardando reservas para sobreviver", diz o psiquiatra Arthur Kaufman, coordenador do Prato (Projeto de Atendimento ao Obeso, do HC). Aliás, é muito comum entre a turma mais pesada fazer jejum de dia e, à noite, "cair de boca" na comida.
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Saiba mais sobre a prática do jejum em algumas religiões
Conheça os efeitos do jejum no corpo
Desejos do corpo são dominados pelo jejum
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Editora do Equilíbrio
"Eba! Amanhã tem bacalhau." Essa frase animada é um forte indício de que o sentido do jejum de carne, para o católico em questão, irá para o ralo nesta Sexta-Feira Santa. Na casa da sogra, da mama ou no restaurante da esquina (os cardápios se "convertem" nesta época), ele muito provavelmente vai se refestelar --ou se entupir-- da iguaria preparada com esmero para compensar a falta da carne. E a idéia de sacrifício, de renúncia à abundância ou de penitência do jejum religioso simplesmente desaparece. Por fim, após o santo almoço, quem dispõe de um tempinho dorme um bocadinho --afinal a carne pede.
E como pede! Está sempre solicitando e de forma inexorável --por fome, sede, sono, dor, frio. As culturas com base na filosofia grega, como as ocidentais, apoiadas no pensamento platônico, situam o corpo como prisão da alma, diz o professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e colunista da Folha Mario Sergio Cortella. O corpo é entendido como a sede da necessidade, o lugar da privação --ele dá cansaço, adoece.
Dá prazer também, como o sexual. Mas é passageiro, a necessidade logo volta à tona. Daí entra a função do jejum em boa parte das religiões, como uma forma de saciar esse corpo insaciável.
Em entrevistas com monge budista, rabino, xeque e cardeal, o jejum aparece como técnica para "tirar o corpo da frente" e, assim, alcançar um estado de desapego material, aproximar-se da divindade ou atingir a prática da solidariedade com os carentes, segundo a religião. O "faminto" também pode ser agraciado com bem-estar, com virtudes como humildade, torna-se mais alerta, com os sentidos mais vívidos, enxergando melhor o entorno e o interior de si mesmo.
Comer, assim como dormir, diz o rabino Nilton Bonder, da Congregação Judaica do Brasil, é uma função que consome um tempo muito grande na vida da pessoa e também da sua atenção -desde a obtenção do alimento até a sua preparação e o ato de comer. "Quando você tira essa função do caminho, percebe: "Uau, alguma coisa é mais importante do que a comida'", diz o rabino. O jejum, portanto, libera a pessoa para ter um dia todo devotado à prática espiritual.
Entre os muçulmanos, essa prática é das mais rígidas e longas. E sentir a fome na pele, pelo menos nesse caso, faz a pessoa se mexer. É fácil ver os necessitados na rua tendo em casa a geladeira cheia, você pensa neles por cinco minutos e pronto, afirma o xeque Jihad Hassan, vice-presidente da Assembléia Mundial da Juventude Islâmica.
A questão é jejuar o mês todo, e a pessoa passar da retórica para a prática, envolvendo-se com os carentes -ou, digamos, liberando a geladeira. "Nada melhor do que a necessidade para fazer o coração frio se aquecer e o coração duro amolecer", resume Hassan.
Essa necessidade promovida pelo jejum religioso "é uma sabedoria dos antigos para obter um certo domínio sobre o corpo, depurar o corpo para o espírito funcionar melhor", diz Antonio José Valverde, chefe do Departamento de Filosofia da PUC-São Paulo.
E a pessoa se sente mais feliz quando domina os seus desejos, porque fica mais forte espiritualmente, diz o cardeal José Freire Falcão, arcebispo emérito de Brasília. Ele recomenda o jejum sobretudo para as pessoas do mundo moderno, "envolvidas pelas "nutrições terrestres", alimentadas por desejos desordenados". A saber: o desejo desordenado de poder, em que se vai atrás dele com o sacrifício da própria dignidade ou esmagando o direito do outro, o de possuir sempre mais e o prazer desordenado.
Barriga vazia também deixa a pessoa humilde. "Com as forças enfraquecidas, você tem uma visão mais humilde de si mesmo; o ego forte tem dificuldade de aceitar suas fraquezas", diz Bonder. Porém há uma armadilha espiritual no jejum.
"Tudo que você faz de forma disciplinar para produzir mais humildade pode provocar o contrário." É o caso do sujeito se achar tão especial pelo que está realizando que acaba orgulhoso, em vez de humilde.
O fato é que "o negócio é bravo", diz o professor do Departamento de Teologia da PUC-SP Fernando Altemeyer. "Nunca sofri tanto como nas 12 primeiras horas." Seu jejum foi político (há 20 anos, em solidariedade a um ato realizado por um grupo de irlandeses), com privação total de alimento durante um dia e meio. Passadas as 12 horas, "você entra em um estado de equilíbrio, torna-se senhor daquele ato, não é mais o desejo que te comanda; foi impressionante para mim".
Além de espiritual, a meta da prática é uma purificação física, se bem que ambas se mesclam. O ex-professor de história das religiões da USP e monge budista do templo Higashi Honganji, Ricardo Mario Gonçalves, durante a sua iniciação, fez cerca de cem dias de abstinência, comendo pouquíssimo.
"O jejum deixa os sentidos mais apurados, você sente o corpo mais saudável, um pouco fraco, mas não está entorpecido por gordura e peso extra", diz ele. A monja Coen, zen-budista, que jejuou em templos no Japão, apesar de em sua tradição não existir a obrigação da prática, conta que a pessoa "escuta melhor, vê melhor, e o olfato e o tato ficam mais vívidos".
No Brasil, praticamente todos os povos indígenas seguem algum tipo de abstenção alimentar em momentos críticos, diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Durante a gravidez, o casal segue restrições alimentares; quando a criança nasce, a mãe faz um jejum, que é presente também em certos momentos da adolescência, no processo de formação do pajé ou em benefício do parente próximo que está doente -para eles, os corpos estão em comunicação; se o filho ingerir um alimento proibido para o pai doente, a saúde do progenitor será prejudicada. As razões do jejum? Físicas (terapêuticas) e metafísicas.
Também na umbanda e no candomblé, antes do recebimento dos orixás, o jejum é usado como regra de purificação. "Uma forma de se "limpar", de se distanciar do profano, do que é impuro e de se aproximar do sagrado", explica a antropóloga Fatima Tavares, do Departamento de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
E para quem jejum lembra mais um outro ritual, aquele praticado, religiosamente, todos os dias nas academias de ginástica, os médicos avisam: ele não garante um corpinho dos deuses. Pode até emagrecer no início, mas a médio prazo perde o efeito. Pesquisas feitas com ursos mostram que, depois da hibernação de meses, durante o inverno, os bichos saem quase tão gordos como quando entraram.
"Após vários jejuns, o organismo se acostuma a não queimar caloria, guardando reservas para sobreviver", diz o psiquiatra Arthur Kaufman, coordenador do Prato (Projeto de Atendimento ao Obeso, do HC). Aliás, é muito comum entre a turma mais pesada fazer jejum de dia e, à noite, "cair de boca" na comida.
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