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Cidade de Deus

"Cidade de Deus", o livro, dá voz a quem não tem mais nada

MARCELO RUBENS PAIVA
articulista da Folha de S. Paulo

Reprodução
A versão atualizada pelo escritor Paulo Lins de "Cidade de Deus"
Ex-favelado negro escreve romance financiado pela Fundação Vitae que, com a indicação de Roberto Schwarz, um dos maiores críticos literários brasileiros, é publicado pela Companhia das Letras.

É dessa maneira que parte do mercado reage à publicação de "Cidade de Deus", de Paulo Lins. Mas essas palavras embutem uma apresentação capenga e lograda. O escritor não surgiu do nada e nem fez um exótico exercício de como é o dia-a-dia de uma favela carioca.

Lins, 38, é poeta de carteirinha. Participou, no começo dos anos 80, do grupo Cooperativa de Poetas, braço carioca do movimento de poesia independente.

Estudou literatura e português na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Publicou, em 86, "Sobre o Sol", livro de poesias, pela editora da universidade.

Teve bolsa de iniciação científica do CNPq _auxiliou uma pesquisa sobre criminalidade na favela Cidade de Deus, no Rio, onde mora desde os oito anos.

"Um mauricinho na favela", como ele próprio se define, Lins, filho de um pintor de paredes, estudou em escolas públicas.

Acompanhou o nascimento e a ascensão do tráfico de drogas em Cidade de Deus, conjunto habitacional para onde vítimas de uma enchente no centro do Rio foram removidas nos anos 60.

Ele não chegou a conviver intimamente com os bandidos, mas os via atuar de sua janela. Assistiu, também, à ocupação desordenada da zona Oeste carioca. Lagos e rios despoluídos transformando-se num pântano de lixo e esperança.

Acompanhou a evolução do crime na favela, do lento 38 ao domínio dos fuzis. Num ritmo de acontecimentos e personagens que atropelam a língua, como Guimarães Rosa, e registrando os que estão à margem, como Lima Barreto, Paulo Lins fez da Cidade de Deus seu foco poético.

Leia a seguir o que o escritor diz sobre literatura e favela nesta entrevista concedida por telefone.

O COMEÇO - "Fui militante do movimento de poesia independente. Era o boom da poesia no Brasil. Fazíamos poemas em camisetas, pôsteres. Até ser contratado para a pesquisa sobre criminalidade. Era fácil entrevistar os bandidos, morei 20 anos no mesmo lugar deles. Sou carioca do Estácio. Mas uma enchente me levou a morar na Cidade de Deus."

O BANDIDO - "Numa favela tem pedreiros, empregadas domésticas, cobradores. Nem todos são envolvidos com o crime. Eu mesmo nunca me envolvi. Era uma espécie de mauricinho, um espectador. Éramos pobres, esperando uma ajuda de Deus. Já o bandido se afasta da comunidade quando é mesmo bandido."

A FAVELA - "O pensamento, na Cidade de Deus, que é um condomínio, é urbanizado. Mas a linguagem é o favelesco. Daí se define o que é uma favela. O tipo de vida é o mesmo das favelas. É onde moram os negros, os nordestinos, a miséria. É onde têm bocas de fumo, onde se improvisa sempre. É onde está o que não presta na sociedade."

O ROMANCE - "Escrevi o romance baseado nas entrevistas que fiz. No meu livro, o personagem central é a comunidade. É um entrelaçamento de todos os tipos. Os fatos mais horríveis do livro são verdadeiros. Mas tem a fantasia."

A EVOLUÇÃO - "Existem três épocas da favela, que traduzi em três capítulos, no livro. Cada época tem sua fala, sua linguagem. Anos 60, 70 e 80. Na primeira época, usei orações subordinadas. Dá um ritmo mais lento. Falava-se em matar. Na terceira, a malandragem ficou mais violenta, matam mesmo.

A COCAÍNA - "A crueldade aumentou com o tempo. Os bandidos hoje são mais jovens. A bala é mais rápida. Antes, imperava o 38. Agora, o fuzil. A cocaína arrebentou com tudo."

O LANÇAMENTO - "Tem um personagem do livro que é inspirado num cara que acabou de sair da cadeia. Ficou dez anos preso. Ele falou que vai comprar um monte de exemplares para vender nos presídios. No lançamento do livro, no Rio, a editora trouxe, em três ônibus, o pessoal da favela. Foi um lançamento botafoguense, tinha branco e preto."

O ESTUDO - "Fiz ginásio na Cidade de Deus. Tinha colegas ricos, Íamos às casas deles brincar de autorama. Peguei o final da boa escola. Depois, fiz colegial no Méier e fui pro quartel. Mas larguei o quartel para estudar na universidade."

O TRABALHO - "Sou professor de ginásio, numa escola na praia de Provetá, em Ilha Grande (RJ). Trabalho numa praia voltada para a África."

Texto publicado na Folha de 16 de agosto de 1997, por ocasião do lançamento do livro “Cidade de Deus”, de Paulo Lins

Leia também a crítica escrita na época por Marcelo Rubens Paiva

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