Folha Online ciencia DNA
DNA
07/03/2003

Maurice Wilkins: o terceiro excluído

LUISA MASSARANI
da Folha de S.Paulo

Reprodução
Maurice Wilkins (1954) com aparelho de raios X similar ao usado no DNA
Quando se pensa na elucidação da estrutura de dupla hélice da molécula do DNA, dois nomes vêm logo à mente: James Watson e Francis Crick, do Laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge (Reino Unido). Mas dois pesquisadores experimentais que foram decisivos para essa descoberta de 1953 são pouco lembrados: os especialistas em cristalografia por raios X Rosalind Franklin e Maurice Wilkins, do King’s College de Londres.

Nascido na Nova Zelândia em 1916, Wilkins ganhou o Prêmio Nobel em 1962, com Watson e Crick, por suas descobertas relacionadas à estrutura molecular dos ácidos nucléicos e seu significado para a transferência de informação em material vivo.

Físico de formação, sua incursão pela área biomédica iniciou-se em 1945, na equipe de J.T. Randall na Universidade St. Andrews (Escócia). No ano seguinte, mudou-se para o King’s College, em Londres, onde até hoje mantém uma sala, onde foi realizada esta entrevista. Atualmente, dedica todo o tempo a uma autobiografia.

Wilkins trabalhou nos Estados Unidos no Projeto Manhattan, para a construção da bomba atômica, mas depois recusou-se a fazer quaisquer pesquisas para desenvolvimento de armas. O controle do uso inadequado da ciência e da tecnologia levou-o a presidir a BSSRS (Sociedade Britânica para a Responsabilidade Social em Ciência), ativa nos anos 70.

Wilkins relata, aqui, que sofreu influência decisiva de Erwin Schrödinger e de Linus Pauling, e comenta o papel de Rosalind Franklin, com a qual mantinha um relação profissional tensa.

Folha - Como o senhor começou a se interessar pela difração de raios X?
Maurice Wilkins -
Fiz trabalhos com difração de raios X [na universidade] em Cambridge, mas acho que o ensino ali não era muito bom. No King's nenhum de nós entendia o suficiente de cristalografia e, na realidade, eu não queria trabalhar com difração de raios X. Achava bem maçante. Quando comecei a trabalhar com Raymond Gosling, um aluno de doutorado, os resultados da difração em estudos com DNA eram tão empolgantes que eu quis trabalhar com a estrutura de genes.

Um livro que teve muita influência nessa decisão foi escrito por Erwin Schrödinger e publicado em 1944. Chamava-se "O que É Vida?". Que pergunta importante, não? Schrödinger não conseguiu responder à questão, mas ele realmente me deixou "ligado" quando disse que um gene deveria ser um cristal aperiódico.

Antes da guerra, como aluno de doutorado de J. T. Randall, estudei luminescência e o comportamento de elétrons em cristais, em que há imperfeições. Quando o cristal é aquecido, os elétrons escapam de armadilhas e emitem radiação. Fiquei entusiasmado com os cristais que são, em essência, regulares e tridimensionais. A idéia era combinar a regularidade do cristal com suas imperfeições. Foi assim que interpretei o que Schrödinger disse.

Só em 1950 consegui trabalhar com cristais de genes. Rudolf Signer, um suíço-alemão que produziu DNA altamente purificado, foi a Londres dar um seminário. Ele tinha amostras desse DNA muito especial, que continha moléculas intactas especialmente preparadas, e distribuiu pequenos tubos metálicos com aquela coisa branca. Fui à palestra e tive a sorte de conseguir um pouco do material.

Folha - Qual era o objetivo de sua visita ao Rio de Janeiro no início da década de 50?
Wilkins -
Éramos parte de um grupo de cientistas de todo o mundo que queriam levar para o Brasil um novo tipo de biologia celular. A visita foi organizada por Carlos Chagas Filho. Eu estava envolvido com todos os tipos de microscopia. E, na ocasião, estava no meio de nosso trabalho usando difração de raios X para o estudo do DNA.

Rosalind Franklin havia acabado de convocar uma reunião para nos mostrar os dados que ela coletara que sugeriam que o DNA não poderia estar na forma de hélice. Logo em seguida, tive de fazer as malas bem rápido e pegar o avião para o Rio. Foi agradável poder escapar assim. Embora eu acreditasse que Rosalind estava sendo franca, algumas pessoas achavam que era tudo uma piada. É claro que não era uma piada, mas eu estava em uma situação difícil. Eu não gostava da idéia de o DNA não ter o formato de hélice.

Folha - Como o sr. recebeu a notícia de que Watson e Crick chegaram ao modelo da estrutura do DNA?
Wilkins -
John Kendrew, que era meu amigo e de Watson e Crick, me telefonou e me deu uma breve descrição de como era o modelo que eles conceberam. Não fiquei muito surpreso. Olhando para trás, acho que o que eles conseguiram de muito especial foi entender como se estabelece o pareamento das bases. Watson e Crick tiveram muita sorte. Quando Jim [Watson] explicou como era o modelo inicial a Jerry Donahue [ex-aluno de Linus Pauling], este disse que ele estava errado. Jim consertou o erro e conseguiu chegar ao modelo certo.

Folha - Como era a sua relação profissional com Watson e Crick?
Wilkins -
Crick era um velho amigo meu, eu o conhecia há muito tempo. Conheci Watson em Nápoles, como ele conta em seu livro. Eu não o convidei para vir para o nosso laboratório porque achei que precisávamos de alguém que tivesse experiência em difração de raios X, já que eu ainda não tinha usado essa técnica. É aí que Rosalind Franklin entra. Ela deveria se juntar a nós, para ajudar em nosso trabalho. Mas quando nomeada, foi dito a ela que Alex Stokes e eu estávamos desistindo do trabalho com DNA; ela e seu aluno seriam as duas únicas pessoas trabalhando com DNA. É claro, isto não era verdade.

Folha - Qual foi a contribuição de Rosalind para a descoberta da estrutura do DNA?
Wilkins -
Ela fez contribuições muito valiosas para a análise do DNA. Mas ficou mais feliz quando foi trabalhar com vírus com outra equipe, no Birkbeck College. Ela queria fazer o trabalho com o DNA com os procedimentos de difração de raios-X devidamente estabelecidos.

Ela não aprovava o fato de que Stokes e eu estávamos entusiasmados com a nova abordagem de Linus Pauling, que construía modelos tridimensionais a partir das ligação entre moléculas e das imagens obtidas por difração. Na verdade, Rosalind também usou esses modelos depois que deixou nosso laboratório. Isto foi descoberto após a sua morte.

Folha - Como o senhor, que foi personagem da fase inicial da nova genética, vê as novas linhas de pesquisa nesse campo, como o Projeto do Genoma Humano e os estudos com clonagem terapêutica?
Wilkins -
Parece-me que os cientistas vão muito bem. Achei interessante ler no jornal que pesquisadores fazem pesquisas com células-tronco em humanos e que esperam poder curar o mal de Alzheimer. Você conhece alguém que tenha mal de Alzheimer? É muito triste. Será muito interessante se isso funcionar.

Folha - Como vê um cientista que aceita trabalhar em armas biológicas?
Wilkins -
Alguns cientistas têm uma visão muito estreita das coisas e uma fascinação pela ciência como tal. É muito perigoso que as pessoas façam qualquer coisa na vida sem considerar as consequências de longo prazo.

Folha - Mas o sr. participou das atividades do Projeto Manhattan.
Wilkins -
Sim. Eu trabalhava com separação, por espectografia de massa, de isótopos de urânio para uso em bombas. Fui para a Califórnia continuar esses estudos no Projeto Manhattan. Quando a guerra acabou, não quis continuar a trabalhar com armas. Quando era estudante, em Cambridge, antes da guerra, havia o grupo de cientistas antiguerra que atuava muito bem e eu me juntei a esse grupo.

Folha - O senhor foi presidente da BSSRS (Sociedade Britânica para a Responsabilidade Social em Ciência), que foi bastante ativa na década de 70. Quais eram os objetivos?
Wilkins -
A sociedade buscava controlar o uso inapropriado da ciência e da tecnologia para fins repressivos ou pelo menos protestar contra tal uso. Foi o caso de um movimento que se fez contra o uso de um gás desenvolvido numa tentativa de conter o conflito na Irlanda do Norte ou o uso de herbicidas no Vietnã. Havia um movimento também para se saber o que laboratórios britânicos estavam fazendo com relação a armamentos nucleares.

O maior sucesso da BSSRS foi uma grande reunião realizada em Londres [em 1971] sobre os impactos sociais da biologia moderna, talvez o primeiro evento voltado para as questões éticas e sociais suscitadas pela genética moderna. A sociedade durou mais de dez anos, mas, gradualmente, desapareceu. Ela foi substituída pela Sociedade para a Responsabilidade Global.

Folha - O senhor é casado com uma mulher que está no campo das artes. Como vê a relação entre arte e ciência?
Wilkins -
A interação entre arte e ciência ajuda o cientista e o artista a terem uma mente mais aberta. Pessoas das duas culturas podem se entender melhor. Claro que as pessoas que não são cientistas nunca entenderão a ciência da mesma forma. A questão-chave é encontrar quais são os aspectos da ciência que os artistas devem entender.

A jornalista Luisa Massarani viajou ao Reino Unido a convite do British Council

Íntegra da entrevista publicada no especial "DNA: 1953-2003", da Folha de S.Paulo

Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).