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DNA
07/03/2003

Natureza versus cultura, a oposição inútil

ALBERTO TASSINARI
Especial para a Folha de S.Paulo

Desde a descoberta do DNA, a hegemonia do pensamento sobre a sociedade deslocou-se da sociedade entendida como um mundo da cultura para a sociedade entendida como uma das extensões da natureza. Nos anos 50, 60 e 70 tudo parecia possível em termos de mudanças sociais promovidas sobre uma base biológica humana praticamente imutável e neutra em relação às novas estruturas mentais, sentimentais e éticas que a moldariam. Os anos 80 e 90 inverteram os termos da questão.

A descoberta do DNA era só um pequeno tijolo, ainda que fundamental, para um conhecimento mais complexo da natureza biológica do homem. Não podia ainda, por si só, opor-se à grande vaga libertária, mas tantas vezes autoritária, que acabaria com o crime eliminando as cadeias, com a loucura eliminando hospitais e com a repressão política eliminando instituições. E, assim por diante, tivemos os bons tempos da maleabilidade cultural do homem.

Bons tempos, porém, teimam em permanecer quase sempre no passado. Quem sabe por razões genéticas, ou quem sabe por razões culturais. Seja como for, a sociedade atual _para quem se formou sob o pensamento social hegemônico dos anos 50, 60 e 70_ tem um aspecto terrível. O conhecimento sobre a biologia humana avançou de modo avassalador. A imutabilidade da natureza biológica do homem não é mais um "x" desconhecido sobre o qual operações culturais poderiam atribuir um valor qualquer conforme avançaria a compreensão cultural do homem.

Com o Projeto Genoma Humano tendo cumprido sua primeira etapa, é a imutabilidade biológica que assumiu, paradoxalmente, um aspecto cultural, pois agora parecemos saber do que somos feitos. Mais ainda, consequências frustrantes e apavorantes decorrem do novo saber: o homem não muda e, se mudar, será pelas mãos da engenharia genética.

Parece haver algo de errado numa mutação tão brusca da hegemonia do pensamento sobre a sociedade. Não se trata, certamente, de uma evolução biológica do homem nos últimos 20 anos. É mais razoável pensar que se trata de uma mudança cultural. A vitória na oposição entre natureza e cultura no conhecimento da humanidade estaria, assim, nos que privilegiam o aspecto cultural. Para reforçar o argumento talvez se possa acrescentar: a prova de que o homem é essencialmente um ser cultural está na própria biologia, pois, salvo engano, o homem é o único animal que estuda a vida e persegue o conhecimento de sua natureza biológica.

Mas a questão não é tão simples, pois o conhecimento atual da natureza biológica do homem não é um conhecimento apenas teórico, mas tecnológico. Se a biologia, por um lado, não passa de um ramo do saber humano e, nesse sentido, é algo de índole cultural, por outro lado, a própria compreensão do que seja a vida humana parece estar mudando, ou, tentando ser mais claro, a vida humana biológica é que se tornou agora maleável, transformável.

A oposição entre natureza e cultura não serve de muita coisa quando o conhecimento cultural de um domínio da natureza acaba por transformar a cultura. A física matemática revolucionou o conhecimento da natureza. Conhecimento, entretanto, que gerou tecnologias e consequências éticas.

A biologia contemporânea não difere da física, nesse sentido. A própria física e a decisão de jogar uma bomba atômica são e não são a mesma coisa. Não são porque o conhecimento teórico não coincide inteiramente com a tecnologia, e, se coincide, fazer a bomba não é jogá-la. Mas uma criança pode sempre perguntar: se não é para jogar, por que fabricar? Para que um outro não jogue primeiro na minha cabeça _é a resposta de praxe. E a conclusão é que vivemos num mundo em que os bons fazem armas para se proteger, e os maus, bombas que se devem desarmar, pois, por serem maus, jogarão nos bons. Em último caso, os bons, para uma proteção maior, devem jogar primeiro. A física e a decisão de jogar a bomba tornam-se, se não a mesma coisa, dois lados de uma mesma questão: o domínio, o controle e a transformação da natureza física só andarão junto com valores éticos que nos parecem universais, mas que só possuem hoje vigências regionais, quando se abrir mão de fabricar armas. Daí a tentativa de um desarmamento mundial. Mas ele só é possível, e tem-se aí o outro lado da moeda, quando países e grupos sociais desistirem de dominar, controlar e transformar uns aos outros. Perspectiva difícil de imaginar. Alguém, cedo ou tarde, jogará a bomba.

Já quais serão as bombas da engenharia genética, não sabemos bem. Serão produzidos pelo Primeiro Mundo, quem sabe, seres humanos transformados imunes às bombas atrasadas dos países periféricos. A imaginação política e a ficção científica começariam a traçar uma lúgubre aliança, em tudo plausível.

Num debate sobre a sociedade humana ou, para evitar tomar partido, sobre a natureza humana, tanto as teses grosso modo culturalistas quanto as naturalistas deveriam participar. Mas o debate será inútil se uma posição não admitir que está, em certa medida, implicada na outra. Explicar a agressividade humana pelos genes parece bem ideológico, mas, já que ela sempre existiu, talvez o conhecimento genético tenha o que dizer. Ou talvez não, mas para saber é preciso ouvir.

Por outro lado, o entendimento do homem como um ser biológico que teria evoluído até a compreensão de seus fundamentos biológicos é algo que não encontra fundamentação teórica. Seriam precisos genes ou assemelhados responsáveis pelo específico conhecimento biológico do homem sobre si mesmo. Ou, então, a biologia estará fundada na curiosidade humana. Mas a curiosidade, ou algo do tipo, é uma coisa muito vaga para uma ciência fundar-se a partir de si. A vitória da tese biológica só pode vingar através da gerência das espécies, se é que a noção de espécie ainda vale, e da própria espécie humana, através de experimentos de domínio, controle e transformação da natureza biológica.

Desse modo, porém, nada se prova sobre os fundamentos biológicos que regeriam a vida humana. Prova-se, antes, a superioridade da engenharia genética sobre a engenhosidade dos humanistas. O que desloca a questão da oposição entre natureza e cultura para a oposição entre o poder dos biólogos e de suas estruturas técnicas, econômicas e administrativas e o poder dos humanistas e das instituições que os suportam.

Se os dois lados não estiverem dispostos a se desarmar de seus preconceitos e a procurar um modo de controlar o controle em tudo descontrolado sobre a natureza e a natureza humana que a nova biologia almeja promover, estaremos entregues a uma proliferação de seitas.

Nos sectarismos, o hábito comanda _ou, quem sabe, como ditariam os genes_ que cada um explique o outro apenas a partir de si, o que não leva a lugar algum. A eficiência da engenharia genética se move num nível de conhecimento diferente de um conhecimento que funda a si próprio _se é que conhecimentos desse tipo ainda existem. E, não existindo, ninguém é senhor da palavra.

Daí que seja em tudo obscurantista ignorar o recente enriquecimento da compreensão do humano e da natureza pelas ciências biológicas. As ciências da natureza mudam a cultura e a cultura, assim transformada, readapta socialmente a ciência. E os algoritmos dessa dupla mutação não estão escritos em lugar nenhum, nem no código genético, nem em leis sociais e históricas, mas no que resultará da frágil mas insistente capacidade de entendimento entre os homens.

Alberto Tassinari, 49, crítico de arte e doutor em filosofia pela USP, é autor de "O Espaço Moderno" (editora Cosac & Naify, 2001)

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